23 de dezembro de 2009

Um Conto de Natal

A caixinha estava aberta. Os dedos bem cuidados formavam uma pinça. Apanhou um bocado de uma vez. Cinco ou seis. Os olhos cansados e o cérebro torpe não se atinham aos detalhes. Meros detalhes. Ouvia sua música preferida e tragava com força o cigarro espremido entre o indicador e o dedo médio. Meia garrafa de vodka repousava sobre a mesinha de centro, a outra metade arrancava-lhe as máscaras e os medos.

Olhou para o ursinho de pelúcia gordinho. Presente do passado, lembrança para o futuro. Ele sorria. Um sorriso que as crianças adoram. Xingou-o. Vomitou sua bílis de agonia e tristeza. Ele era o culpado. Aquela pelúcia fofinha e rechonchuda não poderia ser tão, tão... Sem respostas. Devaneios e embriaguez. Riu e chorou.

Fogos de artifício e risos altos formavam uma sinfonia de graves e agudos descompassados ecoando como um soneto tragicômico. A tela da TV parecia uma pintura abstrata em preto e cinza. O calendário na parede hachurada mostrava uma data: 24 de dezembro. Véspera de Natal. Havia se lembrado mais cedo da importância daquela data. Época do ano que todos gastam em demasia. Formam-se filas quilométricas nos centros das metrópoles; centros de consumo abarrotados, gente brotando como sementes férteis em solo adubado e regado. Fizera a mesma coisa. Presentes. Vários presentes. Gostava de agradar. Gostava de receber sorrisos sinceros. Moeda valiosa.

O pedaço retangular de papel tremia em sua mão. Balançou a cabeça para um lado e para outro. Sinal de insatisfação. Xingou novamente e dessa vez foi um bramido metálico. Tinha a certeza que não seria ouvido e bramiu mais uma vez. Os ponteiros do relógio estavam unidos. Horas e minutos no mesmo lugar. Meia noite. Um grito angustiado. Sufocado. Ficou preso em sua garganta. Na mesinha de centro o visor do celular piscava. Conhecia o número. Uma carinha sorridente associada. O coração disparou. Pensou em não atender. Não entenderia seus motivos e aquela vozinha causava-lhe reações que desconhecia. O aparelho ainda piscava. Atendeu com voz engrolada pela vodka e pela ânsia de um choro iminente.

Feliz Natal, papai!

Amaldiçoou a companhia aérea e as chuvas que impediram seu vôo para casa. Enfiou a mão na caixinha e apanhou mais um punhado de seus caramelos favoritos, a única coisa capaz de adoçar aquele momento insípido. A voz titubeou ao responder. Ele só queria dizer:

Feliz Natal! Te amo, meu filho.

21 de dezembro de 2009

O Boto Rosa Emo


Nos confins do Brasil fala-se do Boto Rosa. Mamífero festeiro, adorador da lua. Sapato mocassim preto e branco, terno de linho de corte elegante. Chapéu Panamá para esconder o imenso nariz. Namorador. Gosta de boa prosa, cerveja gelada. Meia hora de conversa e as menininhas já estão no papo. Aí é só levar para conhecer o fundo do rio.

Mas as coisas já não são mais as mesmas. O excesso midiático provoca mutações, inclusive no famoso Boto. A TV está por toda parte, até na mais distante maloca. Conta-se que o mamífero namorador mudou de nome, segundo uma garota que se apaixonou perdidamente. Eis o depoimento da pobre indiazinha:

Estava com umas amigas numa festa. A animação era geral: música, dança e bebida. NX Zero badalava no volume máximo! Luzes néon, fumaça de gelo seco... tudo perfeito. Eu usava minha melhor saia. Feita de taboca importada de Guiné-Bissau, conchas gregas e sementes vindas exclusivamente da Terra-Média. Naquela noite decidi que encontraria meu príncipe encantado. E ele apareceu. Como nos contos de fadas. A cortina de fumaça dava certo ar de mistério, um smog londrino. Um vulto caminhava lentamente em minha direção. Calça e camisa preta com um desenho de coração flechado colada ao tórax perfeitamente esculpido em horas e mais horas de academia, tênis All Star de cano longo. Olhei para seu rosto. Uma imensa franja cobria da testa ao queixo. Meu Deus! Era lindo. Aquele ar de mistério e sedução gerou uma onda de arrepios em meu corpo. Nunca havia experimentado tal sensação. Teria sido um orgasmo? Mas nem tocar ele me tocou! Passou por mim, balançou a cabeça para ajeitar a franja que encobria seus olhos. Qual seria a cor daqueles olhos? Não me contive e o segui. Ele debruçou-se sobre o balcão e chamou o garçom. Imaginei que ele pediria uma tequila, uma cachaça ou até mesmo uma cerveja gelada, mas não. Ele pediu um copo de duplo de suco de açaí. Sem açúcar. Tomou como se fosse uma loira gelada após meia de hora de futebol sob o sol do verão tropical. Meu Deus! Não acreditei. Era tudo que sempre quis: um homem que não bebe, que não joga futebol e provavelmente não fala palavrões. Um príncipe na sua mais pura síntese. Me aproximei. Sentia seu perfume, um tanto quanto adocicado, mas aquilo era provavelmente um erro grosseiro do meu olfato sensível e nas condições em que me encontrava, já não respondia mais pelos meus atos. Toquei em seus ombros e ele olhou assustado. Parecia ter visto um fantasma. Disse apenas um oi com uma voz rouca e sensual. Pensei em agarrá-lo, mas me contive. Usei todo o meu charme, puxei conversa, ofereci uma bebida e nada... Por fim, já desistindo do meu encantado, perguntei seu nome, disse-lhe que sairia imediatamente após a resposta. O sorriso que se seguiu foi o mais lindo que já vi. Ele olhou bem dentro dos meus olhos e disse: eu sou o famoso Pink Dolphin. Nunca ouviu falar? Me senti a mais ignorante das mortais, não sabia quem era. Seria um novo astro do cinema ou da música pop? Logo eu que sempre fui antenada. Não, nunca ouvi falar, respondi-lhe. E a gargalhada que se sucedeu me fez perder o encanto. Não sei como classificar aquilo, era uma mistura de bateria de escola de samba com uma arara enlouquecida. E ele ainda com o sorriso nos lábios disse: Sou o arcaico, ultrapassado, démodé Boto Rosa, querida.
P.S. Continho bobo escrito com o intuito de brincar com a "onda emo" que virou mania. Até vampiros emos existem...
P.S. 2 Não curto NX Zero nem suco de açaí. Hhehehe!

18 de dezembro de 2009

Olhos de Serpente



Aquela cidade trazia-lhe recordações da infância. Os pezinhos descalços a correr pelas ruas de terra batida; o cabelo loiro e anelado esvoaçando com as lufadas do vento carregado de poeira vermelha. O vestido de retalhos e o broche torto, que encontrara no lixo próximo ao seu casebre de porta e janela.



Lembrara-se do telhado esburacado que não aguentava a carga das águas de março. Do velho assoalho de madeira que parecia uma passarela para desfile de baratas e ratos.


Lembrara-se também dos gritos da madrasta gorda que cheirava a polvilho azedo e gordura de porco.


— Venha logo sua vagabundinha, a casa está um chiqueiro e eu não tenho tempo pra arrumar!


Estava ali, imóvel. Diante seus olhos, passava o filme de terror que fora sua infância. Vinte anos haviam se passado. E aquelas imagens eram reais, pareciam estar acontecendo naquele momento.


Uma lágrima teimou em sair, mas ela a conteve...

Maria Tereza morreu ao dar a luz a uma menina linda. Não tivera tempo para contemplar os olhos amarelos, nem sentir a pele macia como veludo. Sequer pode ter em seus braços aquele montinho cor-de-rosa de gente, muito menos, dar seu leite materno. Não houve tempo para ouvir a palavra: mãe.


Augusto Bernardino estava desesperado no salão frio do hospital, as unhas encravadas na carne, faziam um filete de sangue escorrer pelos braços. Ele gritava e blasfemava:


— Deus miserável! Invejoso desgraçado! Roubou de mim o meu maior tesouro, levou o meu amor! Maldito seja! Eu O desprezo com todas as minhas forças! — as palavras do jovem marceneiro extravasavam todo o ódio que saía de sua alma calejada de infortúnios.


Recebera a notícia que seria pai, numa sexta-feira, meia hora antes de sair do trabalho.


Maria Tereza chegou usando seu melhor vestido. Um vestido de cetim rosa com riscos verdes e azuis. Sabia que Augusto adorava aquele vestido e só o usava em ocasiões especiais.


— Oi meu amor!
— Que surpresa é essa?
— Tenho que lhe contar uma coisa...
— O quê é? Fala logo mulher!
— Eu não agüentei esperar você chegar... é que... – ela fez uma pausa, fazendo certo mistério.
— Fala logo!
— Estou grávida! – respondeu rispidamente.


Ele sentiu os pés deixarem o chão, parecia estar flutuando, os pensamentos divagaram e quase sofreu um acidente com a serra.


— Eu vou ser pai?! Meu amor... obrigado, agora sou o homem mais feliz do mundo, sou um homem completo. – disse abraçando a mulher.


E agora, no salão frio e pálido do hospital, ele brigava com Deus.


Aquele homem outrora sereno, tornara-se rude. Relutara em ver a filha. Ela não era sua filha. Era um monstro, uma assassina. A assassina do seu amor...


Eram esses seus pensamentos, mas ao fim de muita insistência, acabou cedendo e foi ver a “assassina”.


Como pode uma coisinha tão pequena ser chamada de assassina? Ela não tem culpa, o culpado é o invejoso Deus...


A menina recebeu o nome de Olga. Augusto tentara ser amoroso com a pequena, mas não conseguia. A lembrança da morte de sua amada Tereza o fazia tremer e um sentimento inexplicável apossava do seu corpo, transformando-o em um monstro de feições sombrias.


Trancara-se num mundo particular. Num mundo de sombras e tristezas. Augusto não conseguia mais viver sozinho e cinco anos depois, amasiou-se com uma cozinheira gorda que trabalhava no restaurante da esquina. Uma mulher horrível: corpo sem formas, pele branca e encardida, os poucos dentes que lhe restaram, eram cariados e manchados de nicotina. E para completar, a bizarrice, exalava um cheiro insuportável de polvilho azedo. Seu nome era Ivone e, conquistou o sofrido Augusto não se sabe como.


Transformou-se numa espécie de ser mecânico. Acordava às seis, ainda embriagado, ia para o trabalho e chegava às oito da noite bêbado. Tomava um banho e ia dormir. Daquele homem forte de outrora não sobrara nada, era apenas um vulto cadavérico que insistia em brigar com Deus.
A rotina da pequena Olga aos cinco anos de idade era desgastante: obrigada a fazer todo o serviço da casa. Limpava, varria, lavava, enquanto a gorda ficava debruçada sobre o umbral da janela matraqueando sobre a vida alheia e esperando os inúmeros homens que iam visitá-la.


Um dia recebeu um amigo. Um tal Zé João, um negro de quase dois metros de altura e a fama de ser um animal na cama.


A gorda Ivone estava no quarto. Gritava obscenidades, enquanto Olga varria o chão imundo da casa. Ao passar pelo quarto, a menina parou em frente à porta. Aqueles gritos ecoavam de uma maneira estranha, empurrou a porta e viu a cena que jamais sairia de sua cabeça:


A madrasta nua, com a cabeça apoiada no colchão, sendo montada por um homem imenso que batia com força, fazendo as nádegas tremerem como se fossem feitas de gelatina. Ficou paralisada. As mãozinhas escoradas no marco da porta, a carinha angelical tomou-se de um pavor ainda maior, quando o homem virou e fitou-a nos olhos.


— Oi fofinha! Vem brincar com o tio!


A menina sem saber o que estava acontecendo, começou a chorar, chorava silenciosamente, sem emitir um ruído sequer.


O homem parou ao som do grito da gorda:


— Seu porco! Que diabos pensa que vai fazer? Vai me trocar por esse pedaço de gente? Saia daqui! Saia agora!


O homem vestiu suas roupas, resmungou alguma coisa e saiu.


Ivone não se deu ao trabalho de vestir as roupas. Agarrou a menina pelos braços e começou a espancá-la, batia com violência e bramia feito fera. Olga não sentia mais dor, não emitia um ruído sequer. Intensificou a surra. Bateu, bateu até perceber que o corpinho da menina mole, uma boneca inanimada.


Ela sacudia o corpo pálido e roxo:


— Não morra, peste! Acorda vagabunda!


Estirado sobre o estrado de madeira o corpinho frágil descansava. As manchas roxas e vermelhas formavam uma pintura repleta de sombras, a imagem do descaso e da falta de amor. Um fio de sangue escorria pelo canto da boquinha infantil. As pernas tremiam, o corpo todo tremia. Soluços reprimidos.

Augusto não se dava conta das barbaridades que ocorriam em seu lar. As surras eram constantes, os afazeres domésticos cada vez mais pesados tatuavam na pele cicatrizes que Olga carregaria para o resto da vida.


Na época das chuvas seu tormento era ainda maior. Goteiras por todos os cantos alagavam a casa; baratas, ratos e escorpiões se espremiam em busca de lugar. O fedor era insuportável e o trabalho para limpar era doloroso. Ela não reclamava.

A pequena Olga seguia a rotina. Na volta da escola, os pezinhos descalços correndo e pulando pelas ruas, os cabelos balançando com as lufadas do vento. Ela cantava uma musiquinha de criança. Prestava atenção em tudo ao redor. Aquele cenário estava vívido nas lembranças.


Um brilho metálico roubou a atenção. A luz brilhante partia de uma fresta entre o saco preto de lixo e o poste da rua. Lá estava ele. O objeto de seu desejo: um broche dourado em formato de maçã mordida. Estava amassado. Desamassou e o prendeu ao vestido de chita. Um sorriso de felicidade iluminou o rosto infantil. Guardá-lo-ia para sempre. Era seu. Somente seu.

Estranhou a aglomeração de pessoas próximas a casa. Uma vizinha tentou segurá-la, em vão. Ao entrar pela porta da frente, deparou com a mais monstruosa de todas as cenas. Um cenário de Edgar Allan Poe: o corpo da mãe debruçado sobre uma enorme poça de sangue, a cabeça decepada do pescoço, ao lado, o corpo de um homem que ela não conhecia; estavam nus. Pendurado pelo pescoço por uma corda amarrada ao caibro do telhado, o corpo cadavérico do pai, as mãos sujas de sangue, o rosto com uma expressão horripilante. Estava acabado. A pequena Olga segurava o broche torto, a mãozinha sobre o peito, olhar vazio, o corpo imóvel, e de seus lábios vermelhos saiu apenas um suspiro. Um misto de alivio e dor.


A menina foi morar com uma tia e os insultos continuavam:


— Você não deveria ter nascido! Matou sua mãe, fez seu pai sofrer e depois o matou. Você é amaldiçoada! Não a queremos mais aqui!


Era ignorada por todos. Motivo de chacotas e comentários maldosos.


Amaldiçoada! Filha do demo!


Passou a perambular pelas ruas. Comia os restos que encontrava pelas esquinas da solidão.


O sol ardia queimando sua pele encardida pela sujeira do abandono, estava sentada sob a sombra de uma árvore. Uma mulher elegantemente vestida estacionou o imponente carro, abriu a janela deixando o calor quebrar o frio do ar condicionado. Olga levantou a cabeça, os olhos emitiam sinceridade e mistério. Olhos inquisitivos, fortes e profundos. Um olhar, um simples olhar é o suficiente para mudar uma vida, para desviar o curso do destino. E foi isso que aconteceu.


Amélia era uma mulher linda, corpo carnudo, pele morena, longos cabelos negros, sobrancelhas fechadas realçando o rosto fino. Nariz arrebitado e uma boca que fazia os homens arrepiar de prazer. Seu grande poder era o par de olhos amarelos, iguais aos da pequena Olga, que intrigavam, enfeitiçavam e hipnotizavam atraindo suas presas. Olhos de serpente!


Descobriu o sexo da forma mais mesquinha que uma mulher pode conhecer. Sua primeira vez foi com um sargento magrelo e narigudo, pai de uma menina da sua idade. A miséria e a fome fizeram da bela Amélia uma puta. Uma puta escrota, que nas noites da vida comeu o pão que o diabo amassou...


Agora, aos trinta e poucos anos, era sofisticada e rica. Sabia usar as palavras, postava-se com elegância e conhecia intimamente os segredos dos homens. Eles eram fracos e não resistiam ao poder dos seus olhos. Ela tinha o poder e o adorava. Mas sua alma de mulher era triste e vazia. Amélia era infértil. E a pequena Olga veio preencher aquele vazio, a menina de olhos de serpente, era sua filha.


Ela vivia um conto de fadas, era amada e mimada. A mariposa triste transformara-se em uma moça linda. Os cabelos longos e pesados, os olhos amarelos ganharam brilho intenso que seduzia e enfeitiçava. O rosto cheio era perfeito, uma obra de Da Vinci; corpo esculpido, pernas torneadas, seios firmes que apontavam para o firmamento...


Aos dezesseis anos, conheceu o amor. Um rapaz bonito e forte. O queridinho das mocinhas da cidade. Nascido em berço de ouro, filho de um grande fazendeiro, o temido Coronel Afonso de Menesguetti. Um homem severo e implacável com seus inimigos. Seguindo a linha oposta do pai, o jovem Eduardo de Menesguetti, era a generosidade em pessoa, educado, solícito e herdara da mãe o gosto e dom para a poesia. Amava a vida, as pessoas e os versos. O império latifundiário que herdaria não tinha qualquer importância. Detestava as luxuosas festas que aconteciam constantemente na fazenda, preferia sentar sob a sombra do grande Ipê-amarelo e lá, escrevia seus versos.


Olga era péssima em matemática, então, resolveu ter aulas de reforço. Ao entrar na sala 101, viu um rapaz mais velho. Era alto e atlético, pele queimada de sol, cabelos negros como a noite sem lua; rosto bonito que emanava uma onda de benevolência. Seu coração adolescente disparou, ela queria voltar, mas uma voz forte como trovão, fê-la recuar.


— Hei! Volte por favor!

Suas pernas tremeram, seu corpo todo estremeceu.


— Eu... Eu...
— Você é a menina que vai estudar matemática, não é?
— Sim...
— Eu sou Eduardo, o diretor incumbiu-me do cargo...
— Você é o professor?!
— Sim, algum problema? — perguntou sorrindo
— Não! É que...
— Sou muito novo!

Ela sorriu totalmente envergonhada.


— Olga, não é?
— Como sabe?!
— Esqueceu que sou o professor?!

Um sorriso sincero do jovem professor arrebatou o coraçãozinho adolescente da menina.


— Podemos começar a nossa aula?

Eduardo percebeu que Olga era diferente das outras. Não falava em bens materiais, nutria os mesmos gostos literários, as mesmas músicas. Mesmo se vestindo com elegância era naturalmente simples e singela, como uma flor.

Sobre o tapete de flores do pé de Ipê-amarelo Eduardo descobriu o amor, descrevendo-o assim:

O amor

Diz que o amor é fogo que arde.

Digo: é chama que invade.

Diz que o amor rima com a dor.

Digo: rima melhor com sabor.

Diz que o amor é saudade.

Digo: é a mais pura verdade.

Diz que o amor e um tormento.

Digo: é o mais nobre dos sentimentos.

Diz que o amor humilha.

Digo: quem ama, compartilha.

Diz que o amor enlouquece.

Digo: ele engrandece.

Diz que o amor é ilusão.

Digo: é real, pois vem do coração.

Diz que o amor é chuva passageira.

Digo: é eterno, é pra vida inteira.



Percebeu que abaixo do ultimo verso havia escrito o nome de Olga. Estava amando e descobriu que seria eterno.


A menina não conseguia mais esconder seus sentimentos. A aula havia terminado ela se aproximou e disse com um sopro de voz:


— Eu te amo! – As palavras saíram de uma vez, ela abaixou a cabeça, envergonhada, temendo pela resposta, se culpando pela atitude infantil.


O sorriso que aflorou de seu rosto causou uma súbita tontura em Olga.


— Eu também te amo! — Ele estava flutuando, cavalgando nos cirros do céu-azul.

Um beijo de amor aconteceu.


O romance estava no auge e o amor ficava maior a cada dia. A cada fragmento de tempo que passavam juntos. Uma sementinha que se transformara em árvore frondosa. Faziam planos e mais planos para o futuro, Eduardo lhe trazia um novo poema a cada dia, entretanto, aquele poema que o fizera descobrir o amor, estava guardado. Só a entregaria no dia do casamento.


Ele mudou subitamente sua rotina, passado a se interessar pelos negócios do pai, trabalhava arduamente e juntava cada centavo que lhe era dado. Afonso Menesguetti desconfiou da mudança repentina do filho, dirigiu-se ao capataz e ordenou:

— Siga meu filho, seja a sua sombra, mas não deixe que ele desconfie. Traga um relatório de tudo que ele faz na cidade: com que tipo de gente ele anda, com quem conversa... Tudo!


No outro dia bem cedo, o capataz fazia o levantamento de toda a vida da bela Olga. Voltou radiante para a fazenda.


O Coronel vai ficar feliz e quem sabe me dá até um aumento...


Foi direto ao escritório:


— Coronel, ele tá de namorico com uma menina lá da cidade... mas num é coisa boa não, sinhô.
— Desembucha logo!
— A namoradinha do sinhozinho é filha daquele corno que matou a mulher, o Ricardão e depois se enforcou. Diz o povo que a menina é fia do demo, que quando ela nasceu, matou a mãe e desgraçou o pai... agora mora com uma puta de luxo, aquela tal de Amélia Olhos de Serpente...


O Coronel Afonso Menesguetti explodiu:


— Chega! Chega! Já ouvi o bastante. Vá chamar o meu filho.
— Sim sinhô! Dá licença


E o meu aumento, velho filho da puta.


Eduardo descansava saboreando os versos de Drummond, desligado de tudo, apenas sorvendo a poesia que enchia seu coração de júbilo.


O capataz deu-lhe o recado e ele foi falar com o pai:


— O senhor mandou me chamar?
— Senta aí! — Ordenou.

Eduardo olhou assustado para o Coronel.


— O que está acontecendo, meu pai?
— O que está acontecendo?! Tudo, tudo o que não poderia acontecer! – Ele bateu com o punho cerrado na grande mesa.
— Não entendi... o senhor sempre quis que eu assumisse os negócios, tenho trabalhado como um louco há mais de um ano... o que quer mais que eu faça? Que me mate nesta maldita fazenda!
— Eu sei do seu segredinho, sei que está namorando uma putinha...
— Não permito que fale assim dela! — Eduardo se levantou.
— Quem você pensa que é pra falar assim comigo, seu moleque! Todo homem precisa de uma mulher pra dar umas trepadas, mas se casar com uma piranha?! Isso eu não aceito!


Eduardo sentiu o sangue correr acelerado, a face estava ruborizada e coração quase explodindo no peito.


— O senhor se julga acima do bem e do mal, o sabe sobre o amor? Já amou alguma vez? Já foi amado? Acho que não... me lembro de mamãe chorando escondida pelos quartos da fazenda, enquanto o senhor se preocupava em comprar mais vacas, cavalos, soja, café... Isso lhe trouxe felicidade, papai? Ela não é puta! É a mulher que eu amo! E se quer saber, não trepei com ela, isso só acontecerá quando nos casarmos!

Afonso Menesguetti deu uma sonora gargalhada.


— Quanta ingenuidade! Você acha que uma puta...
— Já disse para não chama-la assim!
— Não vou permitir que continue com essa imbecilidade! Esqueceu-se que tem um nome a zelar? Esqueceu-se que é um Menesguetti?
— Eu renego! Renego nome, fortuna, renego tudo! Não nada que venha de uma pessoa como você...
— Cale a boca desgraçado! Você não sabe do que esta falando...
— Sei que matou, roubou, extorquiu e fez o diabo para conseguir esse tal poder. Não quero nada que venha de suas mãos imundas...


O Coronel levantou-se num sobressalto.


— Eu te mato desgraçado! — bramiu.
— Prefiro morrer! Nem o senhor, nem ninguém vai interferir em minha vida...

Eduardo andava de um lado para o outro, parecia um animal enjaulado, os punhos fechados, seu rosto sereno ganhara expressão de fúria. Ele estava disposto a lutar por seu amo.


— Vou embora daqui. Ninguém vai me impedir de ser feliz!
— Cale a boca! — berrou o Coronel, empunhando o revólver.
— Não vou discutir mais com o senhor, meu pai. Já tomei minha decisão e vou me casar com Olga!
— Eu te mato, desgraçado! Juro que te mato! – O Coronel aproximou-se do filho.
— Eu o enfrentarei meu pai, enfrentarei com isso...


Levou a mão direita às costas e sentiu sua pele queimar. Alguma coisa em brasa dilacerava sua carne e uma nuvem de fuligem caiu sobre seus olhos.


O Coronel estava desesperado:


— Meu filho! Meu filho! Fale comigo... Não! Não! Deus, por favor...


Os olhos semicerrados se abriram e Eduardo já envolto pelo abraço iminente da morte, balbuciou:


— Pai... me perdoe... perdoe-me por amar...


Os olhos se fecharam para sempre, em sua mão direita estava um pedaço de papel manchado de sangue estava escrito:


O Amor

Diz que o amor é fogo que arde.

Digo: Amor é chama que invade...


Encostou o cano da arma na fronte e puxou o gatilho sem pensar. Um outro estampido ecoou pela vastidão de seu império.


Era orgulhoso demais. Só Afonso Menesguetti poderia matar Afonso Menesguetti.


A notícia da tragédia correu a cidade como um relâmpago e na porta de casa Olga a ouviu de um moleque que passara na rua:


— Ficou sabendo da história que aconteceu hoje de tarde na fazenda Menesguetti? O Coronel matou o filho e depois deu um tiro na cabeça...


Ela acordou. Estava em um lugar diferente. O silêncio era assustador e um forte cheiro de cloro invadia seu nariz.


— Onde estou?

Amélia deu um pulo.

— Graças a Deus! Meu anjo... pensei que nunca mais ouviria a sua voz...
— Eduardo... onde ele está? Tive um sonho horrível...

Amélia abaixou a cabeça.


— Mãe... não me diga que é verdade!
— Infelizmente minha filha, foi uma tragédia...


Dois anos se passaram. Olga era ainda mais linda. O corpo havia tomado suas formas definitivas, transformando-a em uma mulher fascinante. Mais uma vez, o passado estava guardado na memória, Eduardo era apenas uma lembrança, apenas uma doce e triste lembrança.


Depois do trágico fato, Amélia mudou-se com a filha para Belo Horizonte, comprou uma confortável casa na Savassi e passou a promover encontros para executivos e as altas figuras da sociedade mineira. A casa vivia cheia, Amélia e suas moças não conseguiam dar conta da demanda.


A única coisa proibida naquela casa era Olga. Nenhum homem poderia se aproximar dela. Raramente saia de seu quarto. As brigas com Deus eram frequentes, Olga seguia os mesmos passos do pai. Percebeu que não poderia mais evitar. Seu destino estava traçado. Fora escrito muito antes de ela nascer.


Vestiu um longo preto decotado que realçava toda a sua beleza, maquiou-se com esmero. Desceu as escadas que levavam à sala de recepção. Os lábios sensuais pintados de vermelho e aqueles olhos... ah, aqueles olhos...


Os olhares se voltaram exclusivamente para ela. Os homens boquiabertos, entorpecidos, hipnotizados.


— O que é isso?! — Perguntou Amélia.
— Sou uma de vocês agora! É o que quero!
— Mas... você não pode...
— O destino traçou meu caminho e a Olga que você conheceu, está morta! De hoje em diante serei apenas Olhos de Serpente.


No fundo, Amélia vibrou com a notícia, mais cedo ou mais tarde ela descobriria sua verdadeira vocação. Ela havia aprendido, seus olhos eram mortais, eram olhos de serpente.


A notícia espalhou-se por toda Belo Horizonte, e no dia seguinte havia uma grande fila para o leilão.


Os lances começaram. A virgindade daquela bela mulher tinha preço e era alto.
Ao final de quase uma hora de lances foi arrematada por um importante político mineiro que apregoava a importância da família.


Foram para o quarto especialmente decorado para a ocasião, Amélia pediu ao velho que cuidasse bem de sua filha, ele apenas balançou a cabeça, mordendo os lábios.


Ela estava deitava sobre a cama, usava uma lingerie branca, que deixava seu corpo à mostra. Olhou para o homem paralisado em sua frente e seu olhar o atraiu da mesma forma que a serpente atrai suas presas.


Olga fechou os olhos. Usava um maravilhoso vestido de noiva e Eduardo a carregava em seus braços fortes. Deitou-a com delicadeza na cama coberta por rosas e percorria seu corpo, fazendo carícias. Agora ela estava nua, as mãos hábeis de Eduardo percorriam todo o seu corpo, devorando cada centímetro de sua pele, umedecendo seu sexo, inundando-a de prazer e paixão. Ela sentiu seu membro rijo penetrando seu sexo, um misto de dor e êxtase.


Ela explodiu em gozo:


— Ah... Eduardo eu te amo! Como te amo!


Abriu os olhos e viu aquele estranho ao seu lado, com um sorriso nos lábios a perguntar:


— Como sabe o meu nome?! Mas isso não importa... eu também te amo!


Agora, vinte anos depois, ela estava sentada no banco de couro do seu luxuoso carro, os vidros pretos escondiam seu rosto. A figura de uma mulher madura, extremamente bonita e triste. A mão direita sobre o peito segurava o broche dourado e torto com formas de uma maçã mordida. O filme de terror de sua vida terminara de passar. Outra lágrima teimou em sair e dessa vez deixou que rolasse por sua face, desaguando em seus lábios que emitiram um suspiro:


O amor escolhe seu par, e eu não fui escolhida.




- Disque sonho, bom dia!

- Quanto custa um sonho?
- Depende do tamanho, da complexidade... Qual é mesmo o seu sonho, senhor?
- Meu sonho é ser feliz!
- Isso é complicado senhor, vou estar encaminhando a sua ligação para nosso departamento comercial, um de nossos analistas vai estar fazendo a análise da viabilidade do seu sonho...


Uma musiquinha chata ecoa pelo ouvido do sonhador. Passam-se cinco minutos e a musiquinha ainda perdura, perturba. Uma voz grave quebra aquela melodia maldita.


- Bom dia, em que posso ajudá-lo?
- Quero comprar um sonho... a atendente disse que encaminharia minha ligação...
- Entendo, senhor. Qual é mesmo o seu sonho?
- Eu quero ser feliz!


Mais musiquinha...♫♪♫♪♫


- Um minuto senhor, estou verificando a disponibilidade no sistema... Desculpe pela demora, senhor, verifiquei no sistema, temos dois tipos de felicidade: felicidade integral e felicidade parcial, qual tipo o senhor prefere?
- Tem muita diferença de preço?
- Na verdade, senhor, a felicidade integral nós só vendemos na forma de comodato, ou seja, o senhor participará do nosso Clube da Felicidade, terá direito a vários descontos nos estabelecimentos conveniados e uma carteirinha de Sócio Felizzzz! Para isso, cobramos uma taxa de adesão e mensalidades que cabem no seu bolso! Após a confirmação da taxa, o senhor receberá em casa, sem nenhuma despesa adicional o modem da felicidade integral, enquanto for membro do clube, a felicidade estará em sua casa e onde quer que o senhor esteja...
- Interessante... e a outra forma de felicidade?
- A outra forma é no sistema pré-pago. O senhor compra quanto de felicidade quer e quando acabarem seus créditos, o senhor poderá estar fazendo uma recarga mínima...
- Entendi, e como faço para comprar seus serviços?
- O senhor vai estar preenchendo uma ficha de cadastro. Para o plano da felicidade integral, solicitamos dois avalistas, com imóvel próprio e renda cinco vezes superior ao valor da assinatura; para o caso da felicidade pré-paga, não é necessário, é só pagar e ser feliz!
- Quero ser feliz em tempo integral, mas estou com o nome no Serasa... e não tenho avalistas...
- Desculpe-me, senhor, mas dessa forma o senhor não poderá ser feliz... nosso sistema não aceita...

A ligação foi encerrada. Quem desligou?

14 de dezembro de 2009

Vó Mariinha

As coisas simples da vida me impressionam. Acho que a sofisticação vem da simplicidade. De ser e aparecer.
Vó Mariinha é dessas coisinhas simples da vida. Acumula dezenas de primaveras, verões, invernos e outonos. Sua idade é um mistério. Mas já passou com sobra dos oitenta.
Casou-se aos dezesseis e vieram os dez filhos. Nasceu, cresceu e vive na roça. Algumas vaquinhas no pasto, galinhas, gatos, cachorros e um porquinho na engorda. Gordura e carne para o ano inteiro. Ovos fresquinhos, queijo e leite com fartura. Dá até pra ganhar uns trocados.
Uma vez por mês vem até à cidade. Receber sua aposentadoria. Cartão enfiado na máquina, senha decorada, nada de papelzinho lembrando. Vai ao supermercado, faz sua compra mensal. Os itens da lista, já sabe de cor e salteado. Ela mesma conta o dinheiro, recebe o troco e assina a promissória para o próximo mês.
Benzedeira. Corta cobreiro bravo, espinhela caída, olho gordo e outras coisas mais. E corta mesmo! Mulher de fé. De atos, atitudes e coragem. Sem meios termos, sem meias respostas. Direta. Na carne. Na veia!
Vaidosa. Permanente no cabelo. Sobrancelha delineada; batom carmim. Unhas pintadas; colares coloridos adornam o pescoço, escondendo as rugas. Passos apressados lembram uma formiguinha em sua labuta diária.
Contadora de causos. Histórias de João Brandão que desafiou o diabo; da mulher que se apaixonou pelo carcará, dos capetinhas sentados nos galhos da gameleira e outras mais. Escreve e lê sem ajuda dos óculos, as mãos são firmes, fortes, colossais. Mulher prendada: faz crochê, costura, remenda, lava, passa, capina, ordenha, faz queijo, biscoito de polvilho. Ouvidos atentos às notícias do rádio. Sabe tudo. Como anda a economia, fala com desenvoltura sobre o aquecimento global e até da bolsa de valores entende.
Outro dia me perguntou o que era internet e computador. Esse trem que todo mundo fica falando. Mostrei-lhe o que era. Ficou desapontada, percebi a ponta de frustração em seu semblante sereno. Talvez imaginasse uma coisa de outro mundo, como seus casos sobrenaturais. Era apenas mais uma maquininha parecida com seu televisor obsoleto, jogado no canto do seu quarto. Perguntei-lhe o motivo de nunca ligá-lo. A resposta veio simples, direta, na carne:
Pra quê ligar?
Voltou para sua casa. Na roça. É melhor cuidar das vaquinhas, do porquinho, dos cachorros...

9 de dezembro de 2009

Xangô da Lata Velha



Nasceu Alberto. Ninguém sabe onde e nem como veio parar aqui, na pequenina Bela Vista. Os mais velhos dizem que é o mesmo desde os primórdios. Tenho mais de trinta e ele continua com a mesma cara, a mesma roupa: capacete de operário, botas rasgadas, calças e camisa em frangalhos sob uma capa de lona preta. Quase ninguém sabe seu nome. É conhecido apenas por Xangô da Lata Velha. Pelo amor de Deus, chame-o de tudo, menos pela alcunha.
Alberto é um destes que vem ao mundo com uma missão. Ainda desconheço a minha, mas a dele, ah, a dele todo mundo sabe.
Mora às margens de uma movimentada rodovia que serpenteia pelos vales das montanhas pão de queijo. Numa casa de lata. Sem água encanada, sem luz elétrica, sem cama ou colchão para repousar o corpo cansado. Sem filhos, sem mulher, sem amor. A solidão faz-lhe companhia. Dizem que sofreu por amor. Uma paixão recôndita. A barba comprida, os cabelos crespos despontam sob o capacete, uma tonalidade meio acinzentada. Cara vincada. Corpo encurvado, carregando o peso da sociedade nas costas. Se tem pensão, é um mistério. Nunca pôs os pés num banco pra sacar dinheiro. Suas mãos calejadas quebrariam as maquininhas touch screen. Coisas modernas.
Vende canecas de lata. Uma dúzia delas amarradas à cintura, tintinando como cincerros. Rejeita esmolas. Dinheiro recebido, caneca entregue arbitrariamente ou esmola devolvida.
Ele é assim. Homem de fé. Segue seu ritual. Ao passar pelo cemitério da cidade, ajoelha-se, retira o capacete, faz o sinal da cruz. Pronuncia palavras inteligíveis. Seus lábios balançam. Sobem e descem. Ninguém entende. Passa pelas ruas, cabisbaixo pela força da gravidade e da oxidação das células. Ouvidos aguçados talvez para compensar a precariedade da visão. De longe escuta:
Xangô da Lata Véia!
Pronto. O espetáculo vai começar. Alberto, assim como um super-herói, se transforma. Agora é Xangô da Lata Véia! Sua voz rouca começa a bradar. Suas palavras corretas rogam pragas:

É! Vou rir quando sua cabeça aparecer numa bandeja de prata, assim como São João Batista.

Cuidado! O paletó de madeira é mais apertado do que parece.

Cachorros latem. Galos cantam. Gatos miam. Garotos riem. Fazem festa. Alguns ficam com medo, outros vão à forra. E novamente a alcunha maldita é pronunciada, algumas vezes por bêbados, ou desempregados jogando gamão no banco da praça.

Vai ver quando houver o rangir de dentes. Quando a besta descer soltando fogo pelas ventas, queimando as nuvens, soltando enxofre. O dia vai virar noite...

Os passos lentos empacam. Retira o capacete de operário, faz o sinal da cruz. Volta a caminhar. Suas canecas entoam a música de sua vida. Badaladas secas. Os pés cansados procuram o caminho de casa. De lata. Velha.

1 de dezembro de 2009

Castelo de Cartas


B.B. King acariciava Lucille. O copo de uísque balançava na mão trêmula e as meias pedras de gelo tintinavam nas laterais de vidro. Os olhos pareciam duas abóboras de Halloween murchas. Cabelo desgrenhado, boca com gosto de cinzeiro e malte destilado. Só os suspiros faziam companhia naquela cabine patética e pálida do transatlântico. Tudo engomado, alinhado, padronizado. Um cheiro de lavanda sofisticada acariciava o que restara do olfato. As narinas entupidas de pó. Sob a superfície translúcida da pequena mesa, três carreirinhas e uma nota meio enrolada. Os acordes agressivos de Lucille penetravam seus ouvidos como um archote, incitando-o ao encontro das paredes afiadas da gaiola de cravos. Mais um suspiro lento.

Olhou para o lado e viu a pintura de um barquinho perdido na imensidão do mar, quase engolido pelas ondas. Sorriu. Esquecera-se por completo daquela sensação de bem-estar. Tentou buscar na memória a última vez que mostrara seus dentes brancos e bonitos. Lembrou-se dos olhos que se fundiam com o azul do céu e do mar. Passou a língua sobre o lábio superior acariciando-o e depois mordeu. Sentiu o gosto ocre de sangue. A loucura ziguezagueava, entrava e saia pelas frestas da janela. Sorria. Brincava com ele.

Tentou desviar o olhar, mas os olhos não obedeciam. Pareciam enfeitiçados: o barquinho, o mar, as ondas... Ela. Usava um vestido branco com flores multicoloridas, cabelos fulvos balançando com as lufadas do vento sorrateiro, óculos escuros como redomas que escondiam um tesouro: duas safiras que refletiam sua imagem e lhe mostravam o mundo por um outro prisma. Sua imagem era um caleidoscópio mágico de cores, sons, aromas e paixão. Nada mais importava. Eram eles e o mar. E a vastidão do amor. Um final de semana perfeito. Faria o pedido assim que retornassem do jantar de gala. Ele, enfiado em seu smoking bem cortado e ela, com seu longo preto exibindo através do decote a perfeição de alguns centímetros de seu corpo perfeito. Sabia que aquela imagem causava arrepios no mais sisudo mortal.

Esfregou os olhos e virou-se para trás. Sobre a pequena cama um vulto seminu exibia resquícios do que outrora fora um sorriso. Lábios roxos, tingidos pela inércia da morte. Braços caídos, cabelos formando uma auréola sobre o lençol de cetim. Ainda não acreditava. Silenciosamente perguntava o porquê. Novamente visualizou as carreirinhas sobre a mesa. Sugou-as. Como se sorve o corpo de uma mulher, com volúpia e desejo. Abriu um pacotinho e despejou seu conteúdo na palma da mão. O pó fino e branco, como as asas de um anjo, adentrava em suas narinas e como num passe de mágica se misturava ao som de Lucille, rodopiando em espirais, levando-o para outra dimensão. De êxtase. De gozo e... Morte. O copo foi de encontro ao carpete cinza, o líquido âmbar foi rapidamente absorvido, as pedras de gelo escorregavam lentamente para o fim. Os braços, aos poucos perderam a força, a cabeça ganhou um peso que não suportava e o coração paralisou. Sentia falta dela. Sentia falta da rainha de seu castelo de cartas.