O fedor era insuportável.
Restos de comida espalhados pelas ruas imundas da periferia. O esgoto corria a
céu aberto em pequenas espirais verdes e nojentas. Casebres de lona preta e
lata, pau-a-pique e barro. Ruelas sem luz, chão de terra batida e encharcada de
sangue. No ponto de ônibus um lençol branco manchado de vermelho cobria um corpo.
Poderia ser um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Poderia ser seu irmão,
sua mãe, seu pai.
Mas era apenas um vulto
sem vida.
Ivan Maciel, conhecido como
Tijuana seguia sua rotina diária. Os ponteiros do relógio apontavam quatro da
manhã. Ainda era noite e o frio de junho rompia a camada de napa da jaqueta
desbotada, impregnando sua pele com um hálito gelado que ia até aos ossos.
Tapou o nariz e acelerou
o passo.
— Infeliz! — disse ao
passar pelo vulto.
Andou um quarteirão e
apanhou o ônibus que levava à estação do metrô. Uma hora depois saltou no ponto
de costume, desceu as escadas e se embrenhou por baixo da cidade. Sentiu-se
como uma minhoca. Olhou para os lados e percebeu que não havia ninguém, pensou
em pular a catraca. Economizaria o dinheiro do almoço. Olhou novamente para os
lados, recuou dois passos. Comprou o bilhete duplo e foi embora.
Dentro do trem que
ziguezagueava nos trilhos de aço, absorto em seus pensamentos refletiu sobre a armadilha
que o destino preparara para aquele infeliz.
Quem era? Qual pecado
causara sua morte? Rixa, disputa de poder, drogas, dívidas, luxúria, orgulho,
mentira ou mesmo a preguiça?
Não obteve respostas.
Suas perguntas eram vagas
demais, ele era vazio demais para entender a situação.
Tijuana era artista de
rua. Um exímio e anônimo pintor. Tinha suas convicções e devaneios
intelectuais. Talvez aquele complexo narcisista que todo artista tem. Adorava
pintar abstrações, viajar no abstrato, nas suposições das coisas. Segundo
ouvira dizer, nada é mais belo que o vazio. Detestava o renascentismo e dizia que
o cubismo era apenas um meio-termo. Não gostava de fazer retratos, porém os
fazia — aquela banalidade em tons pastéis e figuras patéticas com sorrisos
plastificados era o que garantia seu sustento.
O trem parou na estação
de costume. Preferiu subir os degraus — era avesso às escadas rolante, um luxo
que não condizia à sua realidade. Lá em cima, deu de cara com a metrópole e o
sol acariciou seu rosto com um calor gostoso. O barulho vindo dos quatro cantos
da metrópole acariciava seus ouvidos. Era a sua música diária.
Era a sinfonia do caos.
Os arranha-céus pareciam
monstros da Odisséia de Homero causando medo e vislumbre, encobrindo as nuvens
e tapando o céu com suas sombras. Seu olfato já acostumara ao cheiro de ar
reciclado e de enxofre despejados em torrentes. Era o perfume nauseabundo do progresso.
Tão diferente e tão igual...
Caos e luxo. Ambiguidade? — pensou.
Uma cena perfeita. O cenário
da miséria e do descaso. Da abundância e da globalização. Da seda e do saco. Do
suportável e do insuportável.
Em sua mente um turbilhão
de cores e sensações concretas. O embate entre ordem e desordem. Precisava
mostrar aquilo. Precisava pintar.
Abriu a maleta, retirou
os pincéis, a paleta e as tintas. Armou o cavalete sob a sombra de uma árvore.
As duas mãos trabalhavam em ritmo frenético, alucinante. A sinfonia do caos
penetrava em seu cérebro e como um maestro, regia seus movimentos, guiando suas
mãos hábeis em traços perfeitos de tinta e fúria.
Era Hemingway escrevendo,
abduzido por completo em seu mundo de devaneios. Era Freud tentando explicar
sua psicanálise; Era Tarantino em Pulp Fiction, Garrincha
e seus dribles; Pelé e sua fome de gol; Era Roberto Drummond e Hilda Furacão;
Era o grito da massa; O progresso do Brasil e a corrupção de Brasília. Era
Milton Nascimento, Toquinho e Vinícius. Era o contraste de um povo e de uma
cultura.
Um louco tentando fazer
arte que ninguém entendia.
Os olhos faiscavam. A
fome corroia o estômago. A miséria mastigava a alma. O amor era o ópio que
entorpecia sua realidade.
Tijuana sentia a arte
exalando do seu âmago cicatrizando suas mazelas e acalentando seus sonhos. Três
horas e cinquenta e dois minutos, foi o tempo que pintou sem parar.
Estava finalizada.
Trapos e traços de cores.
Mistura de sombra e luzes. Vermelho, preto, preto, vermelho, cinza, laranja,
verde, amarelo, azul e branco.
Fogo e lama, água e pedra,
ouro e merda, sangue e paz; caos, ordem e progresso.
Ele estava feliz.
Olhou orgulhoso, estufou
o peito e sorriu. Um sorriso banguela.
A tela?
Era abstrata...