9 de dezembro de 2009

Xangô da Lata Velha



Nasceu Alberto. Ninguém sabe onde e nem como veio parar aqui, na pequenina Bela Vista. Os mais velhos dizem que é o mesmo desde os primórdios. Tenho mais de trinta e ele continua com a mesma cara, a mesma roupa: capacete de operário, botas rasgadas, calças e camisa em frangalhos sob uma capa de lona preta. Quase ninguém sabe seu nome. É conhecido apenas por Xangô da Lata Velha. Pelo amor de Deus, chame-o de tudo, menos pela alcunha.
Alberto é um destes que vem ao mundo com uma missão. Ainda desconheço a minha, mas a dele, ah, a dele todo mundo sabe.
Mora às margens de uma movimentada rodovia que serpenteia pelos vales das montanhas pão de queijo. Numa casa de lata. Sem água encanada, sem luz elétrica, sem cama ou colchão para repousar o corpo cansado. Sem filhos, sem mulher, sem amor. A solidão faz-lhe companhia. Dizem que sofreu por amor. Uma paixão recôndita. A barba comprida, os cabelos crespos despontam sob o capacete, uma tonalidade meio acinzentada. Cara vincada. Corpo encurvado, carregando o peso da sociedade nas costas. Se tem pensão, é um mistério. Nunca pôs os pés num banco pra sacar dinheiro. Suas mãos calejadas quebrariam as maquininhas touch screen. Coisas modernas.
Vende canecas de lata. Uma dúzia delas amarradas à cintura, tintinando como cincerros. Rejeita esmolas. Dinheiro recebido, caneca entregue arbitrariamente ou esmola devolvida.
Ele é assim. Homem de fé. Segue seu ritual. Ao passar pelo cemitério da cidade, ajoelha-se, retira o capacete, faz o sinal da cruz. Pronuncia palavras inteligíveis. Seus lábios balançam. Sobem e descem. Ninguém entende. Passa pelas ruas, cabisbaixo pela força da gravidade e da oxidação das células. Ouvidos aguçados talvez para compensar a precariedade da visão. De longe escuta:
Xangô da Lata Véia!
Pronto. O espetáculo vai começar. Alberto, assim como um super-herói, se transforma. Agora é Xangô da Lata Véia! Sua voz rouca começa a bradar. Suas palavras corretas rogam pragas:

É! Vou rir quando sua cabeça aparecer numa bandeja de prata, assim como São João Batista.

Cuidado! O paletó de madeira é mais apertado do que parece.

Cachorros latem. Galos cantam. Gatos miam. Garotos riem. Fazem festa. Alguns ficam com medo, outros vão à forra. E novamente a alcunha maldita é pronunciada, algumas vezes por bêbados, ou desempregados jogando gamão no banco da praça.

Vai ver quando houver o rangir de dentes. Quando a besta descer soltando fogo pelas ventas, queimando as nuvens, soltando enxofre. O dia vai virar noite...

Os passos lentos empacam. Retira o capacete de operário, faz o sinal da cruz. Volta a caminhar. Suas canecas entoam a música de sua vida. Badaladas secas. Os pés cansados procuram o caminho de casa. De lata. Velha.