1 de dezembro de 2009

Castelo de Cartas


B.B. King acariciava Lucille. O copo de uísque balançava na mão trêmula e as meias pedras de gelo tintinavam nas laterais de vidro. Os olhos pareciam duas abóboras de Halloween murchas. Cabelo desgrenhado, boca com gosto de cinzeiro e malte destilado. Só os suspiros faziam companhia naquela cabine patética e pálida do transatlântico. Tudo engomado, alinhado, padronizado. Um cheiro de lavanda sofisticada acariciava o que restara do olfato. As narinas entupidas de pó. Sob a superfície translúcida da pequena mesa, três carreirinhas e uma nota meio enrolada. Os acordes agressivos de Lucille penetravam seus ouvidos como um archote, incitando-o ao encontro das paredes afiadas da gaiola de cravos. Mais um suspiro lento.

Olhou para o lado e viu a pintura de um barquinho perdido na imensidão do mar, quase engolido pelas ondas. Sorriu. Esquecera-se por completo daquela sensação de bem-estar. Tentou buscar na memória a última vez que mostrara seus dentes brancos e bonitos. Lembrou-se dos olhos que se fundiam com o azul do céu e do mar. Passou a língua sobre o lábio superior acariciando-o e depois mordeu. Sentiu o gosto ocre de sangue. A loucura ziguezagueava, entrava e saia pelas frestas da janela. Sorria. Brincava com ele.

Tentou desviar o olhar, mas os olhos não obedeciam. Pareciam enfeitiçados: o barquinho, o mar, as ondas... Ela. Usava um vestido branco com flores multicoloridas, cabelos fulvos balançando com as lufadas do vento sorrateiro, óculos escuros como redomas que escondiam um tesouro: duas safiras que refletiam sua imagem e lhe mostravam o mundo por um outro prisma. Sua imagem era um caleidoscópio mágico de cores, sons, aromas e paixão. Nada mais importava. Eram eles e o mar. E a vastidão do amor. Um final de semana perfeito. Faria o pedido assim que retornassem do jantar de gala. Ele, enfiado em seu smoking bem cortado e ela, com seu longo preto exibindo através do decote a perfeição de alguns centímetros de seu corpo perfeito. Sabia que aquela imagem causava arrepios no mais sisudo mortal.

Esfregou os olhos e virou-se para trás. Sobre a pequena cama um vulto seminu exibia resquícios do que outrora fora um sorriso. Lábios roxos, tingidos pela inércia da morte. Braços caídos, cabelos formando uma auréola sobre o lençol de cetim. Ainda não acreditava. Silenciosamente perguntava o porquê. Novamente visualizou as carreirinhas sobre a mesa. Sugou-as. Como se sorve o corpo de uma mulher, com volúpia e desejo. Abriu um pacotinho e despejou seu conteúdo na palma da mão. O pó fino e branco, como as asas de um anjo, adentrava em suas narinas e como num passe de mágica se misturava ao som de Lucille, rodopiando em espirais, levando-o para outra dimensão. De êxtase. De gozo e... Morte. O copo foi de encontro ao carpete cinza, o líquido âmbar foi rapidamente absorvido, as pedras de gelo escorregavam lentamente para o fim. Os braços, aos poucos perderam a força, a cabeça ganhou um peso que não suportava e o coração paralisou. Sentia falta dela. Sentia falta da rainha de seu castelo de cartas.