27 de novembro de 2010

Passagem Proibida


Um adeus mudo como uma imagem refletida no espelho. Assim despediu-se da vida. Lábios retesados e alguns dentes amarelos à mostra formavam uma careta de dor e culpa.

Era inverno. O frio cortante rompia a camada de napa da jaqueta esfarrapada trespassando a pele, a carne, fazendo os ossos doerem. Tomou um gole de café para espantar o sono de uma noite maldormida. Apanhou a mochila, beijou a filha que dormia na serenidade infantil, encolhida sobre o estrado de madeira forrado com papelão e coberta por um pedaço de pano raso. O ursinho de pelúcia, sem os olhinhos e o nariz, agarrado ao corpo, era a única coisa quente que sentira naquela época do ano. Olhou para cima, a fuligem que impregnava o teto cheio de gretas formava uma espécie de pintura rupestre. Talvez, naquele momento, quisera ter tido uma sorte melhor: uma casa confortável, uma cama e um sofá, uma TV em cores, uma geladeira com um pinguim em cima e comida dentro. Queria ter aprendido a escrever seu nome e poder ajudar a filha nas lições escolares. Uma lágrima viscosa desceu lentamente pela face encardida. Suspirou e saiu.

A ruela de terra batida absorvia os dejetos da comunidade. Vira-latas, ratos, baratas e urubus rodeavam o córrego a céu aberto em busca de comida, de sobrevivência. Um lençol branco encobrindo um corpo no canto da rua apresentava manchas vermelhas e pretas. Ele balançou a cabeça. Mesmo acostumado àquela cena cotidiana, era difícil entender tanta violência.

Falta de caráter ou de sorte? — pensou.

Andou por meia hora até o ponto de ônibus que o levava até à estação do metrô. Quarenta minutos depois saltou pela porta de trás, se embrenhando por debaixo da cidade. Parou em frente à catraca. Pensou em pular, economizaria o dinheiro do almoço. Deu dois passos para trás, comprou o bilhete duplo e foi embora. Sentiu-se como uma minhoca serpenteando por baixo da terra.

O trânsito estava parado. Buzinas, gritos, exaltação. Balbúrdia. Caos.

Uma placa gritava em letras garrafais:

PASSAGEM PROIBIDA!

— Não tenho grana pra comprar... seja lá o que for! — resmungou, enquanto seguia seu caminho.

Ouviu gritos. Pessoas correndo. Alguns pulavam, outros se jogavam ao chão. As sirenes das viaturas policiais urravam e os estampidos de tiros zuniam. Tentou correr. Tentou pular...

Na altura do peito, sobre o coração, a carne queimava. Uma nuvem cinza caiu sobre as retinas.
Fecharam-se as cortinas da vida. Abriram-se as cortinas da morte. Sua última cena, seu último ato na tragédia da existência.

No jornal do dia seguinte, uma notícia de rodapé nas páginas policiais:

Bala perdida mata trabalhador da construção civil.

E ele só queria uma casa confortável...

11 de abril de 2010

Quarto de hotel


Ela caminhava de tal forma que seus passos mal tocavam o chão encharcado. Seu estado de torpor a impedia de visualizar o brilho viscoso que escorria pelas folhas marrons queimadas pelo sol de outrora. Zunidos martelavam em seus ouvidos, abafando o som nervoso dos bueiros que engoliam a densa enxurrada alaranjada.

Parou. Ajeitou o capuz preto sobre a densa cabeleira loira — que naquele momento tinha cor de cabelo de molhado. Com um movimento automático apanhou o crucifixo de ouro que pendia sobre o peito e enfiou a haste sob a unha limpando a pequena nódoa. Voltou a caminhar. Um filme passava quadro a quadro, misturando-se às imagens apressadas da metrópole, como em uma película de cinema mudo. E agora tudo era negro, cinza e vermelho. Alcatrão. Fumaça. Sangue. Zunido...

A porta estava escancarada. Dois corpos jaziam. Dentes brancos esboçando sorrisos de felicidade em meio à miséria. Um misto de vergonha, medo e... prazer. O fedor nauseabundo da morte rodopiava entre as paredes do hotel fundindo-se ao cheiro de lavanda barata e naftalina. Ela ainda conseguia visualizar a cena anterior: um homem magro sobre a cama desfeita. O lençol meio caído, meio esticado, indicava que ali houvera ação. Seu bigode ralo fazia as vezes de um filtro extra para a fumaça do cigarro que serpenteava das narinas e boca. O corpo suado recendia a sexo. Ao prazer libidinoso da carne.

Ela estava nua ao seu lado e sorria. Seus dedos finos tocavam a pele manchada do homem, fazendo-o se contorcer, talvez pelas cócegas do atrito, talvez pelo acúmulo de energia sexual, ou quem sabe, por algum capricho da anatomia humana. Estremeceu ao se lembrar dos momentos de êxtase e apertou as pernas. Deleitava-se naquele antro. Era feliz. Mas sentia remorso. Olhou para o espelho e percebeu que seu reflexo estava cortado por uma linha mofada. Passos apressados cortaram o corredor e se estacionaram junto à porta. Um barulho seco. Flagrante.

Um homem alto e gordo arfava. Suas mãos tremiam em grandes solavancos. Os olhos injetados de sangue davam-lhe ares de fera. Pronta para atacar. O indicador em riste apontava. Sinalizava. Em um átimo, o mesmo indicador flexionava o gatilho do revólver. Um tiro. Trovões raivosos estouravam do lado de fora e entravam pelas frestas das janelas. Sem gritos. Sem polvorosa.

Vestiu a roupa e saiu apressada. Não teve coragem de fitar o homem gordo que agora abraçava o corpo ensanguentado. Muito menos pôde ouvir suas palavras:

“Há uma certa vergonha em sermos felizes perante certas misérias” ... nossa felicidade era apenas uma máscara. Uma sombra. A sombra de uma mentira.

Outro estampido ecoou pelo quarto. Mas ela já estava longe, de volta ao convento.

15 de fevereiro de 2010

Não julgue o livro pela capa

Jogou a capa de chuva sobre o corpo. O imenso capuz preto encobria seu rosto bonito, escondendo os olhos verdes tristes. Ela poderia ter escolhido uma mais bonitinha, mais feminina. Mas não. Não queria compactuar da mesma moda das metidinhas do condomínio. Seu estilo era aquele: meio despachado, meio intelectual. Metade mulher, metade menina. Metade borboleta, metade fera. Simplesmente ela.

Divertia-se com o barulho dos passos pesados espalhando a água empoçada. Meia hora depois o sol espalhava seu calor gostoso sobre o céu de dezembro.
A aula de inglês estava maçante. Saiu sem pedir licença. Ansiava chegar ao seu lugar favorito: a sombra do grande ipê amarelo. A velha árvore era sua amiga, sua confidente. Tatuara em seu tronco suas iniciais e as daquele babaca metido a artista. Arrepiou-se ao lembrar que emoldurara as letras com um coração flechado. Quanta falta de criatividade! Agora, sob sua copa frondosa ela observa o buraco escuro no tronco da velha amiga. Coisas que nos arrependemos com o tempo.

Eu não aguentava mais aquele desfile de egos. Egocêntricos ignorantes. Afrouxei a gravata que me estrangulava. Estava de saco cheio de ar reciclado.
Sob o ipê amarelo, vi a silhueta de uma mulher com um livro na frente do rosto. Segurava-o com uma mão e a outra mexia nos cabelos em curtos intervalos. Ela estava impaciente, ansiosa ou descontente. Não sou adivinho, muito menos tenho bola de cristal. Li uma matéria numa dessas revistas femininas que as mulheres sempre mexem nos cabelos quando estão nervosas, impacientes ou querem muito alguma coisa. Mistérios do sexo feminino.

Observava-a de longe. Ria das intermináveis caretas, biquinhos e sorrisos fortuitos. Ela se divertia na leitura daquele livro. Que livro seria? Que história interessante era aquela que a deixava tão inquieta? Vampiros? Não. Ela não tinha cara de quem gostava de vampiros. Filosofia? Provavelmente também não. As ideias filosóficas são chatas demais para arrancar risinhos tão sinceros e lindos. Queria saber que diabos de livro era aquele. E o mais importante: que mulher era aquela.

Pulei de um banco para outro rodeando o ipê amarelo. A grama verde, os cisnes brancos e pretos nadando num balé desajeitado sobre as águas do lago artificial, pareciam um daqueles quadrinhos vendidos em dúzias e que enfeitam a maioria das casas. Lembrei-me da minha. Havia um daqueles decorando a parede da sala.

Tomei coragem. Coloquei o jornal debaixo do braço. Assustei-me com o barulho dos meus pés amassando a grama verdinha. Logo naquele maldito dia havia me esquecido dos óculos. Sou míope. Precisei chegar mais perto, tinha que ver o rosto que aguçou minha curiosidade e meus instintos masculinos. Precisava saber o título do livro que ela devorava com a mesma volúpia e desejo que se devora... deixa pra lá.

Retirei os sapatos, não queria atrapalhar sua concentração, muito menos chamar sua atenção. Caminhei pisando em ovos, sei que é clichê, mas é a melhor forma para descrever o esmero com o qual eu pisava. Estava perto, uns cinco ou seis passos. Num ato mecânico, como se estivesse espantando uma mosca enxerida, ela levantou o livro, cobrindo completamente o rosto...

Um giro de cento e oitenta graus, os mesmos passos esmerados fizeram o caminho de volta. Não olhei para trás.

Ela continuou sua leitura, deitada, sonhando e rindo. Tranquila sob a sombra fresca. Eu voltei para a Editora. Servia-me de consolo não saber o enredo daquela história. Não perdi meu tempo lendo o original de um escritor desconhecido. Julguei o livro pela capa, ou melhor, pela falta dela.

30 de janeiro de 2010

Uma Simples Maçã

Calçou a botina, olhou para o céu tentando adivinhar o que vinha pela frente. As nuvens claras salpicadas pelo firmamento formavam um zoológico de bichinhos, definitivamente não era um bom oráculo. Tomou um gole de café morno que descansava sobre o que outrora fora um braseiro. Jogou a enxada sobre o ombro, ajeitou o chapéu de feltro sobre a cabeça e saiu.

No casebre, um trio de bocas abertas, sedentas e famintas mantinha-se mudas. Esperando algo para sonhar. Sonhar?! Aquelas criaturas não conheciam sonhos. Viviam no limbo do pesadelo diário. Pesadelo de fome, de sede e dor. Dor? Era comum. Desconheciam um colchão macio, um lençol de algodão, mesmo que fosse fajuto. Era assim que eu pensava...

De longe ouvi uma musiquinha. A voz era fraca e a melodia agradável. Um afago para meus ouvidos acostumados à balbúrdia da cidade grande. Caminhei seguindo a trilha de notas musicais. O homem trabalhava a terra. A enxada subia e descia em atos sincronizados, como um maestro regendo a orquestra. Ele cantava e a voz tremia com os solavancos de seu instrumento de trabalho chocando-se contra o chão vermelho e duro. Olhou para mim. Parou por um instante, enxugou o rosto e tocou a aba do chapéu, cumprimentando-me. Acenei retribuindo a gentileza. Sem que percebesse, deixei uma maçã sobre seu embornal. Continuei meu caminho observando a poeira que subia.

No quintal, duas crianças brincavam. Risinhos espontâneos. Sequer se importavam com o sol que castigava a pele e feria os olhos. No varal, uma mulher magra estendia a roupa encardida e cantava. Como poderiam cantar e sorrir no meio daquela pobreza? Pensei. Sentei sob um naco de sombra. Tomei um gole de água ainda fria que trazia no cantil térmico. Coisas modernas, da China. Observava a rotina daquelas pessoas. Pouco tempo depois, uma fumacinha subia em espirais, atravessando o sapé da minúscula casa de barro e pau-a-pique. Um cheiro diferente rodopiou pelo ar. Cheiro de quê?

Uma hora depois percebi que as crianças ficaram mais agitadas. Seria fome? Pulavam e corriam. Ouvi a mulher gritar que o almoço estava pronto. Espantei-me com a resposta:

Vamos esperar papai.

Não demorou muito até ele chegar. Os risinhos se intensificaram. As crianças correram ao encontro do pai. Uma das mãos estava escondida atrás das costas. A curiosidade infantil deu voltas ao redor do homem, tentando descobrir o que ele guardava. Lentamente abriu a mão. Uma maçã. Vermelha. Vívida. Doce e gostosa. As vozes tenras perguntaram em uníssono:

O que é isso?

Ele sorriu.

Uma coisa pra se admirar...
Admirar? Era para comer. Uma maçã. Uma simples maçã...

11 de janeiro de 2010

Uma Vida...



Sua fortuna passava facilmente da casa dos milhões. E mesmo assim vestia-se com simplicidade. Calça jeans desbotada, camisa de gola abotoada até a metade e uma bota de couro marrom com solado de borracha grossa que só trocava quando a sola do pé encontrava o chão.
Gabava-se que tudo era fruto do suor do seu rosto e da força de seus braços. Acordava religiosamente às quatro da manhã e antes do galo cantar já estava a caminho do trabalho. Chegava ao escritório e conferia o fechamento do dia anterior, ia ao pátio e inspecionava pessoalmente as máquinas. A voz grave e pausada sempre disposta a dar um bom-dia sincero e com um sorriso afável recebia os funcionários que chegavam.
Avesso às colunas sociais. Dispensava com gentileza todos os convites para confraternizações, preferia tomar uma cerveja num boteco copo sujo e comer um tira-gosto gorduroso no bar do Pescoço. Nada de champanhe, nem vinho. Dizia que eram bebidas pra mulher.
Família criada e os filhos, o oposto do pai. Ostentavam o luxo que o dinheiro compra. Carros importados, roupas de grifes, badalações em grau máximo. Frequentavam as melhores escolas, as melhores festas, se contentavam apenas com o melhor. E o velho continuava em sua rotina. Seu tesão era o extrato bancário: aquela enxurrada de zeros à direita. Colírio para os olhos cansados e formosa dama para espantar as tristezas da alma. Tinha um sonho: uma Mercedes. Fácil de ser resolvido. Era só escolher o modelo... mas se contentava com o Tempra 95. Seria um sacrilégio gastar tanto dinheiro com um carro que fazia a mesma coisa que o antigo companheiro. Protelava o sonho. Um dia, quem sabe!
O tempo que faz brotar e murchar exerceu seu poder. E corpo murchou. Cansou-se das horas de trabalho sem descanso, dos zeros que preenchiam as casas dos milhões. Cansou-se de tudo. E o castigo só é dado para quem não o merece. Realmente ele não merecia aquela coisa.
A família reunida na sala esperando por notícias. Ninguém sabia o que se passava, aguardavam ansiosos a chegada do médico. E ele veio com a sentença: Alguns dias, no máximo um ou dois meses. O fim anunciado de uma jornada sem nódoas. Lágrimas de dor inundaram os olhos. Sentimentos que se desconhece até a intermitência da vida.
O corpo pálido descansava sobre o lençol limpo. Os filhos cochichavam, tinham medo de acordá-lo. O mais velho que ostentava longas madeixas escuras sentia falta das reclamações. Lembrava-se dos pedidos diários para que cortasse os cabelos e se portasse como homem de verdade, e logo depois, recebia um beijo de pai na face de menino. A enfermeira trouxe a caixinha de remédios. Uma porção. Logo ele que nunca foi de ir ao médico, de tomar remédio. Suas dores de cabeça e resfriados eram curadas com cachaça e mel. Nunca falhara.
Abriu os olhos e a luz causou-lhe certo desconforto. Lentamente esfregou os olhos, uma gotinha salgada desceu sem esforços. Raridade. O homem bonito a sua frente segurava um molho de cabelos. Um beijo na face enrugada. Beijo de filho. A cadeira de rodas atravessou o saguão triste do hospital, levando-o de volta para o dia. Na portaria, uma Mercedes prateada brilhava refletindo os raios do sol de uma manhã bonita como a mulher amada. Um sorriso repuxado aflorou.
O vento entrava pela janela acariciando o rosto tranquilo. As ruas barulhentas da cidade estavam em câmera lenta. Abrindo passagem. Outra lágrima desceu e secou em seguida. Fechou os olhos e partiu.