13 de agosto de 2012

Espirais de Fumaça




Enquanto devaneio, a chuva lava as ruas da cidade que não para.
Tomo um gole de café quente. Forte e doce, do jeito que só eu sei fazer. Acendo um cigarro e deixo os dedos descansando sobre as teclas do computador.
Trago a fumaça e solto uma baforada de alcatrão, nicotina e outras substâncias prejudiciais à saúde. Sentado no sofá, pernas cruzadas, olhos perdidos no vazio, vejo a fumaça subir em pequenas espirais e se desfazer no percurso até se desmanchar no teto encardido do apartamento. 
Imagino a vida. 
Intensa no início e com o passar do tempo vai se esvaindo até se dissipar por completo. É a lei natural das coisas: nascemos, crescemos e por fim, morremos. Não adianta tentar pegar a fumaça! Ela escapa por entre os dedos.
 E nesse trajeto a gente aprende que as limitações nos tornam mais fortes e mais flexíveis. Que a falta de dinheiro nos ensina a pechinchar e eliminar o supérfluo. Que o cumprimento de um desconhecido nos faz sentir observado e importante. Que errar nos ensina a ter jogo de cintura. Que as pessoas preguiçosas são as mais criativas, elas inventam artifícios para ganhar tempo e facilitar a vida. Que quem muito reclama pouco produz. Fica preso às suas reclamações. Que engolir sapos não é tão ruim quando se têm objetivos. E devolver os sapos engolidos é bom demais!
Que chorar não lava a alma, dá rugas.
Que sentir raiva estraga o fígado e produz mau hálito.
Que um papo informal é muito melhor que uma conversa carrancuda e formal.
Que regras existem para serem quebradas, violadas, reinventadas...
Que um sorriso sincero é o mais belo gesto de amizade.
Que grandes amizades nascem em mesa de boteco.
Que um amor impossível nos faz enxergar a vida com outros olhos, nos motiva a encarar cada dia de forma única, nos permite observar os mínimos detalhes antes despercebidos pela nossa insensibilidade. Torna-nos mais vaidosos e preocupados com nossa aparência e bem-estar. Motiva-nos a ser sempre melhor, melhor em tudo, mais bonito, mais competente, mais atraente...
Até que encontremos um outro novo amor impossível...
E aí, começarmos tudo outra vez!
Que a vida é uma escola, e que seremos eternos alunos.
Que viver é ser, e fazer os outros felizes!
E isso é bom demais!
Lá fora, a chuva ainda cai, observo a fumaça do cigarro que está no fim... São apenas espirais. 
Espirais de fumaça.


10 de agosto de 2012

A Sinfonia do Caos


                                                                                     Hieronymus Bosch




O fedor era insuportável. Restos de comida espalhados pelas ruas imundas da periferia. O esgoto corria a céu aberto em pequenas espirais verdes e nojentas. Casebres de lona preta e lata, pau-a-pique e barro. Ruelas sem luz, chão de terra batida e encharcada de sangue. No ponto de ônibus um lençol branco manchado de vermelho cobria um corpo. Poderia ser um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Poderia ser seu irmão, sua mãe, seu pai.
Mas era apenas um vulto sem vida.
Ivan Maciel, conhecido como Tijuana seguia sua rotina diária. Os ponteiros do relógio apontavam quatro da manhã. Ainda era noite e o frio de junho rompia a camada de napa da jaqueta desbotada, impregnando sua pele com um hálito gelado que ia até aos ossos.
Tapou o nariz e acelerou o passo.
— Infeliz! — disse ao passar pelo vulto.
Andou um quarteirão e apanhou o ônibus que levava à estação do metrô. Uma hora depois saltou no ponto de costume, desceu as escadas e se embrenhou por baixo da cidade. Sentiu-se como uma minhoca. Olhou para os lados e percebeu que não havia ninguém, pensou em pular a catraca. Economizaria o dinheiro do almoço. Olhou novamente para os lados, recuou dois passos. Comprou o bilhete duplo e foi embora.
Dentro do trem que ziguezagueava nos trilhos de aço, absorto em seus pensamentos refletiu sobre a armadilha que o destino preparara para aquele infeliz.
Quem era? Qual pecado causara sua morte? Rixa, disputa de poder, drogas, dívidas, luxúria, orgulho, mentira ou mesmo a preguiça?
Não obteve respostas.
Suas perguntas eram vagas demais, ele era vazio demais para entender a situação.
Tijuana era artista de rua. Um exímio e anônimo pintor. Tinha suas convicções e devaneios intelectuais. Talvez aquele complexo narcisista que todo artista tem. Adorava pintar abstrações, viajar no abstrato, nas suposições das coisas. Segundo ouvira dizer, nada é mais belo que o vazio. Detestava o renascentismo e dizia que o cubismo era apenas um meio-termo. Não gostava de fazer retratos, porém os fazia — aquela banalidade em tons pastéis e figuras patéticas com sorrisos plastificados era o que garantia seu sustento.
O trem parou na estação de costume. Preferiu subir os degraus — era avesso às escadas rolante, um luxo que não condizia à sua realidade. Lá em cima, deu de cara com a metrópole e o sol acariciou seu rosto com um calor gostoso. O barulho vindo dos quatro cantos da metrópole acariciava seus ouvidos. Era a sua música diária.
Era a sinfonia do caos.
Os arranha-céus pareciam monstros da Odisséia de Homero causando medo e vislumbre, encobrindo as nuvens e tapando o céu com suas sombras. Seu olfato já acostumara ao cheiro de ar reciclado e de enxofre despejados em torrentes. Era o perfume nauseabundo do progresso.
Tão diferente e tão igual...  Caos e luxo.  Ambiguidade? — pensou.
Uma cena perfeita. O cenário da miséria e do descaso. Da abundância e da globalização. Da seda e do saco. Do suportável e do insuportável.
Em sua mente um turbilhão de cores e sensações concretas. O embate entre ordem e desordem. Precisava mostrar aquilo. Precisava pintar.
Abriu a maleta, retirou os pincéis, a paleta e as tintas. Armou o cavalete sob a sombra de uma árvore. As duas mãos trabalhavam em ritmo frenético, alucinante. A sinfonia do caos penetrava em seu cérebro e como um maestro, regia seus movimentos, guiando suas mãos hábeis em traços perfeitos de tinta e fúria.
Era Hemingway escrevendo, abduzido por completo em seu mundo de devaneios. Era Freud tentando explicar sua psicanálise; Era Tarantino em Pulp Fiction,  Garrincha e seus dribles; Pelé e sua fome de gol; Era Roberto Drummond e Hilda Furacão; Era o grito da massa; O progresso do Brasil e a corrupção de Brasília. Era Milton Nascimento, Toquinho e Vinícius. Era o contraste de um povo e de uma cultura.
Um louco tentando fazer arte que ninguém entendia.
Os olhos faiscavam. A fome corroia o estômago. A miséria mastigava a alma. O amor era o ópio que entorpecia sua realidade.
Tijuana sentia a arte exalando do seu âmago cicatrizando suas mazelas e acalentando seus sonhos. Três horas e cinquenta e dois minutos, foi o tempo que pintou sem parar.
Estava finalizada.
Trapos e traços de cores. Mistura de sombra e luzes. Vermelho, preto, preto, vermelho, cinza, laranja, verde, amarelo, azul e branco.
Fogo e lama, água e pedra, ouro e merda, sangue e paz; caos, ordem e progresso.
Ele estava feliz.
Olhou orgulhoso, estufou o peito e sorriu. Um sorriso banguela.
A tela?
Era abstrata...

8 de agosto de 2012

Acaso lembra?

Imagem: Goya - Los Caprichos.


Lembra da última vez que sorriu...
Um sorriso de verdade?
Acaso lembra?


Lembra da última vez que disse a verdade...
A verdade propriamente dita?
Acaso lembra?


Lembra da última vez que amou...
Um amor que fez esquecer da realidade...
Acaso lembra?


Lembra da última vez que viu o sol nascer...
Sem antes olhar para o relógio...
E perceber que estava em cima da hora?
Acaso lembra?


Lembra da última vez observou um passarinho...
Livre,
Voando,
Entoando sua melodia de amor à vida?
Acaso lembra?


Lembra do último beijo apaixonado...
Daqueles que se beija com os olhos fechados...
Sentindo apenas o calor e frescor de um beijo de amor?
Acaso lembra?


Lembra da última vez que foi feliz?
Acaso lembra?