15 de outubro de 2011

O vento




Hoje pude sentir o vento.


Há tempos que não sentia o vento. Há tempos que ele, o vento, ficara lá do lado de fora, roçando outras peles, outros rostos, secando outras lágrimas.


Hoje pude sentir como é bom sentir o vento. Aquela brisa fresca que afaga, acaricia, como as mãos de quem amamos.

Estava preso. Minha prisão não tinha portas nem janelas. Não se podia ver o sol nem a lua e as estrelas. Não podia sentir o vento.


Minha prisão era eu mesmo.


Trancado, trancafiado dentro do meu próprio ego, dentro das minhas próprias dores e sofrimentos. Agrilhoado em lamentações, afogado em lágrimas que não sei bem de onde vêm.

O vento me trouxe de volta à vida. Mostrou-me que fora da prisão há um sol que brilha, uma noite com lua e estrelas e amantes, uma chuva fina que molha a terra fazendo-a germinar. O vento me mostrou que meu ego, egoísta, narcisista é apenas ego.


Nada mais.


Que minhas lágrimas serão apenas lágrimas, que minhas dores serão apenas dores. Simples. Não há como mudar.

Agora, liberto, sinto o vento. Vejo o vento. Não observo a vida passar.


Hoje, simplesmente, vivo a vida!

1 de setembro de 2011

Upa, cavalinho!





O homem velho não gostava de falar. Ficava o tempo todo mudo. Preferia os animais e seus cigarros enrolados a mão com precisão de máquina. Acho que ele conversava com a fumaça que subia em pequenas espirais, talvez, não sei, ela levasse consigo os segredos do velho homem.

Para ele, o dia se arrastava. Lentamente. Segundo a segundo que parecia contar. Eu via seus olhos, sem brilho, sem cor. Duas bolas de vidro trincadas. Eu via sua boca meio murcha, vincada e manchada pela nicotina de anos, se movimentar como se conversasse com alguém, como se quisesse, finalmente, falar. Mas não conseguia escutar o som de sua voz. Não. Não conseguia. O velho homem não gostava de falar.

Lembro-me de quando eu era criança. Gordinho, chorão e pirracento. Lembro-me do velho homem chegando em casa, trajando uniforme cinza com cheiro de suor, cigarro e de longe, uma fragrância de sabonete. Ele não era velho. Cabelos pretos, barba preta bem aparada, rosto sorridente e voz grave. Gritava meu nome. E eu corria para abraçá-lo. Sentia o gosto meio acre de suor, sentia o pelo da barba espetar meus lábios, mas não me importava. Esperava o dia inteiro por aquele momento. De repente ele ficava de quatro e eu montava em suas costas. Não fazia ideia do meu peso. E o homem magrelo suportava, sem reclamar.

— Upa, cavalinho! Upa, cavalinho! — era o que eu gritava entre gargalhadas.

O velho homem não gostava de falar. Ficava o dia inteiro enrolando seus cigarros. Abria o papelzinho, colocava uma medida de fumo, enrolava, e depois, com a língua umedecida, selava-os. Era sempre assim.

Fazia muito tempo que não ouvia sua voz. Eu me esquecera de como era a sua voz. Eu me esquecera de como era seu sorriso.


Eu me esquecera.

Assustei-me quando ele, o homem velho, tocou em meus ombros e disse:

— Por que não conversa mais comigo? — havia um brilho molhado em seus olhos. Não havia mais trincas. — Upa, cavalinho! Upa, cavalinho...

24 de agosto de 2011

O último beijo


O amor pode morrer? E como roubar o último suspiro?
A felicidade é como o vento: algumas vezes é brisa que afaga; noutras tormenta que mata.
Fui feliz um dia. E o vento acariciava meu rosto como as mãos macias de toda mulher. Se existe amor, aquilo que eu sentia era a sua mais pura síntese.

*****

Viagem planejada há mais de um ano: rota traçada e malas prontas. Tomaríamos vinho nas Serras Gaúchas, dançaríamos tango em Buenos Aires, esquiaríamos em Bariloche... Visualizava seus sorrisos de menina travessa em poses para fotografias com seus intermináveis biquinhos.

Aquela tensão pré-viagem me consumia. Queria que tudo fosse perfeito. Escolhi a dedo os cenários e o roteiro. Seria o filme das nossas vidas. E a cena final já estava escrita: nossos corpos nus, brilhando sob a chama da lareira, acalentados pelo fogo do vinho, eu faria o pedido:
— Aceita passar o resto de sua vida ao meu lado?
E ela já enrubescida e tomada pelos encantos de Baco, que descortinava sua habitual timidez, responderia sim com um beijo.

O Sol nem mesmo havia acordado e já estávamos na estrada. Ouvíamos nossa música favorita e os sorrisos pareciam fundidos num só, como nos álbuns de casamento.

Uma moldura de árvores que cresciam em linha reta, quase arranhando o firmamento, enfeitava nosso caminho. Eu a observava no banco do carona: boca e olhos semicerrados esboçavam um sorriso, mostrando a tênue linha que separa realidade e sonhos. Meu Deus, como era linda!

Não tínhamos ido muito longe, uma cortina de névoa subia pelo asfalto ofuscando a visão. Um caminhão estava parado no acostamento. Alguma pane, ou algum gigante poderoso e cruel o colocara ali, naquele ponto cego da rodovia. Quando vi aquele monstro de aço, busquei o pedal do freio, senti que não conseguiria parar, então desviei bruscamente para a esquerda...
Nem mil anos apagará de minha memória o barulho daquela madrugada. Os pneus cantando uma música fúnebre, os vidros estourando, rasgando minha carne, o carro girando, girando... Não sentia dor, só medo e pavor.
O grito doloroso que ouvi antes de tudo apagar, matou o que restara de mim.

Quando acordei o mundo estava de cabeça para baixo, pessoas por todos os lados. Luzes vermelhas piscavam, vozes engroladas balbuciavam coisas ininteligíveis. Só havia vultos distorcidos em minha frente. Imagens borradas. Algo quente e viscoso escorria por entre meus olhos, fundindo-se às lágrimas inconscientes que desciam pela minha face lívida e horrorizada.

Mas de algum modo encontrei meu amor naquela manhã...

Um pouco à frente, pude vê-la. Arrastei-me por alguns metros, sem me importar com o aço retorcido dilacerando meu corpo. Ela estava deitada sobre o tapete verde de relva encharcada de sangue. Ergui sua cabeça e seus olhos encontram os meus. Seu rosto emitia uma sensação indescritível de paz, com um sorriso no canto dos lábios, balbuciou:
— Abrace-me querido, apenas por um instante...

Minhas mãos trêmulas e titubeantes ganharam forças que não consigo explicar. Aninhei-a em meus braços num abraço apertado, tentando em vão doar minha vida. Beijei-a como deve ser um beijo de amor: intenso e pausado, olhos fechados, respiração lenta. Podia sentir sua vida esvaindo...

Nosso último beijo.

O amor morreu e eu roubei seu último suspiro.

Conto baseado na letra Last Kiss de Pearl Jam.