10 de agosto de 2012

A Sinfonia do Caos


                                                                                     Hieronymus Bosch




O fedor era insuportável. Restos de comida espalhados pelas ruas imundas da periferia. O esgoto corria a céu aberto em pequenas espirais verdes e nojentas. Casebres de lona preta e lata, pau-a-pique e barro. Ruelas sem luz, chão de terra batida e encharcada de sangue. No ponto de ônibus um lençol branco manchado de vermelho cobria um corpo. Poderia ser um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Poderia ser seu irmão, sua mãe, seu pai.
Mas era apenas um vulto sem vida.
Ivan Maciel, conhecido como Tijuana seguia sua rotina diária. Os ponteiros do relógio apontavam quatro da manhã. Ainda era noite e o frio de junho rompia a camada de napa da jaqueta desbotada, impregnando sua pele com um hálito gelado que ia até aos ossos.
Tapou o nariz e acelerou o passo.
— Infeliz! — disse ao passar pelo vulto.
Andou um quarteirão e apanhou o ônibus que levava à estação do metrô. Uma hora depois saltou no ponto de costume, desceu as escadas e se embrenhou por baixo da cidade. Sentiu-se como uma minhoca. Olhou para os lados e percebeu que não havia ninguém, pensou em pular a catraca. Economizaria o dinheiro do almoço. Olhou novamente para os lados, recuou dois passos. Comprou o bilhete duplo e foi embora.
Dentro do trem que ziguezagueava nos trilhos de aço, absorto em seus pensamentos refletiu sobre a armadilha que o destino preparara para aquele infeliz.
Quem era? Qual pecado causara sua morte? Rixa, disputa de poder, drogas, dívidas, luxúria, orgulho, mentira ou mesmo a preguiça?
Não obteve respostas.
Suas perguntas eram vagas demais, ele era vazio demais para entender a situação.
Tijuana era artista de rua. Um exímio e anônimo pintor. Tinha suas convicções e devaneios intelectuais. Talvez aquele complexo narcisista que todo artista tem. Adorava pintar abstrações, viajar no abstrato, nas suposições das coisas. Segundo ouvira dizer, nada é mais belo que o vazio. Detestava o renascentismo e dizia que o cubismo era apenas um meio-termo. Não gostava de fazer retratos, porém os fazia — aquela banalidade em tons pastéis e figuras patéticas com sorrisos plastificados era o que garantia seu sustento.
O trem parou na estação de costume. Preferiu subir os degraus — era avesso às escadas rolante, um luxo que não condizia à sua realidade. Lá em cima, deu de cara com a metrópole e o sol acariciou seu rosto com um calor gostoso. O barulho vindo dos quatro cantos da metrópole acariciava seus ouvidos. Era a sua música diária.
Era a sinfonia do caos.
Os arranha-céus pareciam monstros da Odisséia de Homero causando medo e vislumbre, encobrindo as nuvens e tapando o céu com suas sombras. Seu olfato já acostumara ao cheiro de ar reciclado e de enxofre despejados em torrentes. Era o perfume nauseabundo do progresso.
Tão diferente e tão igual...  Caos e luxo.  Ambiguidade? — pensou.
Uma cena perfeita. O cenário da miséria e do descaso. Da abundância e da globalização. Da seda e do saco. Do suportável e do insuportável.
Em sua mente um turbilhão de cores e sensações concretas. O embate entre ordem e desordem. Precisava mostrar aquilo. Precisava pintar.
Abriu a maleta, retirou os pincéis, a paleta e as tintas. Armou o cavalete sob a sombra de uma árvore. As duas mãos trabalhavam em ritmo frenético, alucinante. A sinfonia do caos penetrava em seu cérebro e como um maestro, regia seus movimentos, guiando suas mãos hábeis em traços perfeitos de tinta e fúria.
Era Hemingway escrevendo, abduzido por completo em seu mundo de devaneios. Era Freud tentando explicar sua psicanálise; Era Tarantino em Pulp Fiction,  Garrincha e seus dribles; Pelé e sua fome de gol; Era Roberto Drummond e Hilda Furacão; Era o grito da massa; O progresso do Brasil e a corrupção de Brasília. Era Milton Nascimento, Toquinho e Vinícius. Era o contraste de um povo e de uma cultura.
Um louco tentando fazer arte que ninguém entendia.
Os olhos faiscavam. A fome corroia o estômago. A miséria mastigava a alma. O amor era o ópio que entorpecia sua realidade.
Tijuana sentia a arte exalando do seu âmago cicatrizando suas mazelas e acalentando seus sonhos. Três horas e cinquenta e dois minutos, foi o tempo que pintou sem parar.
Estava finalizada.
Trapos e traços de cores. Mistura de sombra e luzes. Vermelho, preto, preto, vermelho, cinza, laranja, verde, amarelo, azul e branco.
Fogo e lama, água e pedra, ouro e merda, sangue e paz; caos, ordem e progresso.
Ele estava feliz.
Olhou orgulhoso, estufou o peito e sorriu. Um sorriso banguela.
A tela?
Era abstrata...