30 de janeiro de 2010

Uma Simples Maçã

Calçou a botina, olhou para o céu tentando adivinhar o que vinha pela frente. As nuvens claras salpicadas pelo firmamento formavam um zoológico de bichinhos, definitivamente não era um bom oráculo. Tomou um gole de café morno que descansava sobre o que outrora fora um braseiro. Jogou a enxada sobre o ombro, ajeitou o chapéu de feltro sobre a cabeça e saiu.

No casebre, um trio de bocas abertas, sedentas e famintas mantinha-se mudas. Esperando algo para sonhar. Sonhar?! Aquelas criaturas não conheciam sonhos. Viviam no limbo do pesadelo diário. Pesadelo de fome, de sede e dor. Dor? Era comum. Desconheciam um colchão macio, um lençol de algodão, mesmo que fosse fajuto. Era assim que eu pensava...

De longe ouvi uma musiquinha. A voz era fraca e a melodia agradável. Um afago para meus ouvidos acostumados à balbúrdia da cidade grande. Caminhei seguindo a trilha de notas musicais. O homem trabalhava a terra. A enxada subia e descia em atos sincronizados, como um maestro regendo a orquestra. Ele cantava e a voz tremia com os solavancos de seu instrumento de trabalho chocando-se contra o chão vermelho e duro. Olhou para mim. Parou por um instante, enxugou o rosto e tocou a aba do chapéu, cumprimentando-me. Acenei retribuindo a gentileza. Sem que percebesse, deixei uma maçã sobre seu embornal. Continuei meu caminho observando a poeira que subia.

No quintal, duas crianças brincavam. Risinhos espontâneos. Sequer se importavam com o sol que castigava a pele e feria os olhos. No varal, uma mulher magra estendia a roupa encardida e cantava. Como poderiam cantar e sorrir no meio daquela pobreza? Pensei. Sentei sob um naco de sombra. Tomei um gole de água ainda fria que trazia no cantil térmico. Coisas modernas, da China. Observava a rotina daquelas pessoas. Pouco tempo depois, uma fumacinha subia em espirais, atravessando o sapé da minúscula casa de barro e pau-a-pique. Um cheiro diferente rodopiou pelo ar. Cheiro de quê?

Uma hora depois percebi que as crianças ficaram mais agitadas. Seria fome? Pulavam e corriam. Ouvi a mulher gritar que o almoço estava pronto. Espantei-me com a resposta:

Vamos esperar papai.

Não demorou muito até ele chegar. Os risinhos se intensificaram. As crianças correram ao encontro do pai. Uma das mãos estava escondida atrás das costas. A curiosidade infantil deu voltas ao redor do homem, tentando descobrir o que ele guardava. Lentamente abriu a mão. Uma maçã. Vermelha. Vívida. Doce e gostosa. As vozes tenras perguntaram em uníssono:

O que é isso?

Ele sorriu.

Uma coisa pra se admirar...
Admirar? Era para comer. Uma maçã. Uma simples maçã...

11 de janeiro de 2010

Uma Vida...



Sua fortuna passava facilmente da casa dos milhões. E mesmo assim vestia-se com simplicidade. Calça jeans desbotada, camisa de gola abotoada até a metade e uma bota de couro marrom com solado de borracha grossa que só trocava quando a sola do pé encontrava o chão.
Gabava-se que tudo era fruto do suor do seu rosto e da força de seus braços. Acordava religiosamente às quatro da manhã e antes do galo cantar já estava a caminho do trabalho. Chegava ao escritório e conferia o fechamento do dia anterior, ia ao pátio e inspecionava pessoalmente as máquinas. A voz grave e pausada sempre disposta a dar um bom-dia sincero e com um sorriso afável recebia os funcionários que chegavam.
Avesso às colunas sociais. Dispensava com gentileza todos os convites para confraternizações, preferia tomar uma cerveja num boteco copo sujo e comer um tira-gosto gorduroso no bar do Pescoço. Nada de champanhe, nem vinho. Dizia que eram bebidas pra mulher.
Família criada e os filhos, o oposto do pai. Ostentavam o luxo que o dinheiro compra. Carros importados, roupas de grifes, badalações em grau máximo. Frequentavam as melhores escolas, as melhores festas, se contentavam apenas com o melhor. E o velho continuava em sua rotina. Seu tesão era o extrato bancário: aquela enxurrada de zeros à direita. Colírio para os olhos cansados e formosa dama para espantar as tristezas da alma. Tinha um sonho: uma Mercedes. Fácil de ser resolvido. Era só escolher o modelo... mas se contentava com o Tempra 95. Seria um sacrilégio gastar tanto dinheiro com um carro que fazia a mesma coisa que o antigo companheiro. Protelava o sonho. Um dia, quem sabe!
O tempo que faz brotar e murchar exerceu seu poder. E corpo murchou. Cansou-se das horas de trabalho sem descanso, dos zeros que preenchiam as casas dos milhões. Cansou-se de tudo. E o castigo só é dado para quem não o merece. Realmente ele não merecia aquela coisa.
A família reunida na sala esperando por notícias. Ninguém sabia o que se passava, aguardavam ansiosos a chegada do médico. E ele veio com a sentença: Alguns dias, no máximo um ou dois meses. O fim anunciado de uma jornada sem nódoas. Lágrimas de dor inundaram os olhos. Sentimentos que se desconhece até a intermitência da vida.
O corpo pálido descansava sobre o lençol limpo. Os filhos cochichavam, tinham medo de acordá-lo. O mais velho que ostentava longas madeixas escuras sentia falta das reclamações. Lembrava-se dos pedidos diários para que cortasse os cabelos e se portasse como homem de verdade, e logo depois, recebia um beijo de pai na face de menino. A enfermeira trouxe a caixinha de remédios. Uma porção. Logo ele que nunca foi de ir ao médico, de tomar remédio. Suas dores de cabeça e resfriados eram curadas com cachaça e mel. Nunca falhara.
Abriu os olhos e a luz causou-lhe certo desconforto. Lentamente esfregou os olhos, uma gotinha salgada desceu sem esforços. Raridade. O homem bonito a sua frente segurava um molho de cabelos. Um beijo na face enrugada. Beijo de filho. A cadeira de rodas atravessou o saguão triste do hospital, levando-o de volta para o dia. Na portaria, uma Mercedes prateada brilhava refletindo os raios do sol de uma manhã bonita como a mulher amada. Um sorriso repuxado aflorou.
O vento entrava pela janela acariciando o rosto tranquilo. As ruas barulhentas da cidade estavam em câmera lenta. Abrindo passagem. Outra lágrima desceu e secou em seguida. Fechou os olhos e partiu.