15 de fevereiro de 2010

Não julgue o livro pela capa

Jogou a capa de chuva sobre o corpo. O imenso capuz preto encobria seu rosto bonito, escondendo os olhos verdes tristes. Ela poderia ter escolhido uma mais bonitinha, mais feminina. Mas não. Não queria compactuar da mesma moda das metidinhas do condomínio. Seu estilo era aquele: meio despachado, meio intelectual. Metade mulher, metade menina. Metade borboleta, metade fera. Simplesmente ela.

Divertia-se com o barulho dos passos pesados espalhando a água empoçada. Meia hora depois o sol espalhava seu calor gostoso sobre o céu de dezembro.
A aula de inglês estava maçante. Saiu sem pedir licença. Ansiava chegar ao seu lugar favorito: a sombra do grande ipê amarelo. A velha árvore era sua amiga, sua confidente. Tatuara em seu tronco suas iniciais e as daquele babaca metido a artista. Arrepiou-se ao lembrar que emoldurara as letras com um coração flechado. Quanta falta de criatividade! Agora, sob sua copa frondosa ela observa o buraco escuro no tronco da velha amiga. Coisas que nos arrependemos com o tempo.

Eu não aguentava mais aquele desfile de egos. Egocêntricos ignorantes. Afrouxei a gravata que me estrangulava. Estava de saco cheio de ar reciclado.
Sob o ipê amarelo, vi a silhueta de uma mulher com um livro na frente do rosto. Segurava-o com uma mão e a outra mexia nos cabelos em curtos intervalos. Ela estava impaciente, ansiosa ou descontente. Não sou adivinho, muito menos tenho bola de cristal. Li uma matéria numa dessas revistas femininas que as mulheres sempre mexem nos cabelos quando estão nervosas, impacientes ou querem muito alguma coisa. Mistérios do sexo feminino.

Observava-a de longe. Ria das intermináveis caretas, biquinhos e sorrisos fortuitos. Ela se divertia na leitura daquele livro. Que livro seria? Que história interessante era aquela que a deixava tão inquieta? Vampiros? Não. Ela não tinha cara de quem gostava de vampiros. Filosofia? Provavelmente também não. As ideias filosóficas são chatas demais para arrancar risinhos tão sinceros e lindos. Queria saber que diabos de livro era aquele. E o mais importante: que mulher era aquela.

Pulei de um banco para outro rodeando o ipê amarelo. A grama verde, os cisnes brancos e pretos nadando num balé desajeitado sobre as águas do lago artificial, pareciam um daqueles quadrinhos vendidos em dúzias e que enfeitam a maioria das casas. Lembrei-me da minha. Havia um daqueles decorando a parede da sala.

Tomei coragem. Coloquei o jornal debaixo do braço. Assustei-me com o barulho dos meus pés amassando a grama verdinha. Logo naquele maldito dia havia me esquecido dos óculos. Sou míope. Precisei chegar mais perto, tinha que ver o rosto que aguçou minha curiosidade e meus instintos masculinos. Precisava saber o título do livro que ela devorava com a mesma volúpia e desejo que se devora... deixa pra lá.

Retirei os sapatos, não queria atrapalhar sua concentração, muito menos chamar sua atenção. Caminhei pisando em ovos, sei que é clichê, mas é a melhor forma para descrever o esmero com o qual eu pisava. Estava perto, uns cinco ou seis passos. Num ato mecânico, como se estivesse espantando uma mosca enxerida, ela levantou o livro, cobrindo completamente o rosto...

Um giro de cento e oitenta graus, os mesmos passos esmerados fizeram o caminho de volta. Não olhei para trás.

Ela continuou sua leitura, deitada, sonhando e rindo. Tranquila sob a sombra fresca. Eu voltei para a Editora. Servia-me de consolo não saber o enredo daquela história. Não perdi meu tempo lendo o original de um escritor desconhecido. Julguei o livro pela capa, ou melhor, pela falta dela.