24 de agosto de 2011

O último beijo


O amor pode morrer? E como roubar o último suspiro?
A felicidade é como o vento: algumas vezes é brisa que afaga; noutras tormenta que mata.
Fui feliz um dia. E o vento acariciava meu rosto como as mãos macias de toda mulher. Se existe amor, aquilo que eu sentia era a sua mais pura síntese.

*****

Viagem planejada há mais de um ano: rota traçada e malas prontas. Tomaríamos vinho nas Serras Gaúchas, dançaríamos tango em Buenos Aires, esquiaríamos em Bariloche... Visualizava seus sorrisos de menina travessa em poses para fotografias com seus intermináveis biquinhos.

Aquela tensão pré-viagem me consumia. Queria que tudo fosse perfeito. Escolhi a dedo os cenários e o roteiro. Seria o filme das nossas vidas. E a cena final já estava escrita: nossos corpos nus, brilhando sob a chama da lareira, acalentados pelo fogo do vinho, eu faria o pedido:
— Aceita passar o resto de sua vida ao meu lado?
E ela já enrubescida e tomada pelos encantos de Baco, que descortinava sua habitual timidez, responderia sim com um beijo.

O Sol nem mesmo havia acordado e já estávamos na estrada. Ouvíamos nossa música favorita e os sorrisos pareciam fundidos num só, como nos álbuns de casamento.

Uma moldura de árvores que cresciam em linha reta, quase arranhando o firmamento, enfeitava nosso caminho. Eu a observava no banco do carona: boca e olhos semicerrados esboçavam um sorriso, mostrando a tênue linha que separa realidade e sonhos. Meu Deus, como era linda!

Não tínhamos ido muito longe, uma cortina de névoa subia pelo asfalto ofuscando a visão. Um caminhão estava parado no acostamento. Alguma pane, ou algum gigante poderoso e cruel o colocara ali, naquele ponto cego da rodovia. Quando vi aquele monstro de aço, busquei o pedal do freio, senti que não conseguiria parar, então desviei bruscamente para a esquerda...
Nem mil anos apagará de minha memória o barulho daquela madrugada. Os pneus cantando uma música fúnebre, os vidros estourando, rasgando minha carne, o carro girando, girando... Não sentia dor, só medo e pavor.
O grito doloroso que ouvi antes de tudo apagar, matou o que restara de mim.

Quando acordei o mundo estava de cabeça para baixo, pessoas por todos os lados. Luzes vermelhas piscavam, vozes engroladas balbuciavam coisas ininteligíveis. Só havia vultos distorcidos em minha frente. Imagens borradas. Algo quente e viscoso escorria por entre meus olhos, fundindo-se às lágrimas inconscientes que desciam pela minha face lívida e horrorizada.

Mas de algum modo encontrei meu amor naquela manhã...

Um pouco à frente, pude vê-la. Arrastei-me por alguns metros, sem me importar com o aço retorcido dilacerando meu corpo. Ela estava deitada sobre o tapete verde de relva encharcada de sangue. Ergui sua cabeça e seus olhos encontram os meus. Seu rosto emitia uma sensação indescritível de paz, com um sorriso no canto dos lábios, balbuciou:
— Abrace-me querido, apenas por um instante...

Minhas mãos trêmulas e titubeantes ganharam forças que não consigo explicar. Aninhei-a em meus braços num abraço apertado, tentando em vão doar minha vida. Beijei-a como deve ser um beijo de amor: intenso e pausado, olhos fechados, respiração lenta. Podia sentir sua vida esvaindo...

Nosso último beijo.

O amor morreu e eu roubei seu último suspiro.

Conto baseado na letra Last Kiss de Pearl Jam.