11 de janeiro de 2010

Uma Vida...



Sua fortuna passava facilmente da casa dos milhões. E mesmo assim vestia-se com simplicidade. Calça jeans desbotada, camisa de gola abotoada até a metade e uma bota de couro marrom com solado de borracha grossa que só trocava quando a sola do pé encontrava o chão.
Gabava-se que tudo era fruto do suor do seu rosto e da força de seus braços. Acordava religiosamente às quatro da manhã e antes do galo cantar já estava a caminho do trabalho. Chegava ao escritório e conferia o fechamento do dia anterior, ia ao pátio e inspecionava pessoalmente as máquinas. A voz grave e pausada sempre disposta a dar um bom-dia sincero e com um sorriso afável recebia os funcionários que chegavam.
Avesso às colunas sociais. Dispensava com gentileza todos os convites para confraternizações, preferia tomar uma cerveja num boteco copo sujo e comer um tira-gosto gorduroso no bar do Pescoço. Nada de champanhe, nem vinho. Dizia que eram bebidas pra mulher.
Família criada e os filhos, o oposto do pai. Ostentavam o luxo que o dinheiro compra. Carros importados, roupas de grifes, badalações em grau máximo. Frequentavam as melhores escolas, as melhores festas, se contentavam apenas com o melhor. E o velho continuava em sua rotina. Seu tesão era o extrato bancário: aquela enxurrada de zeros à direita. Colírio para os olhos cansados e formosa dama para espantar as tristezas da alma. Tinha um sonho: uma Mercedes. Fácil de ser resolvido. Era só escolher o modelo... mas se contentava com o Tempra 95. Seria um sacrilégio gastar tanto dinheiro com um carro que fazia a mesma coisa que o antigo companheiro. Protelava o sonho. Um dia, quem sabe!
O tempo que faz brotar e murchar exerceu seu poder. E corpo murchou. Cansou-se das horas de trabalho sem descanso, dos zeros que preenchiam as casas dos milhões. Cansou-se de tudo. E o castigo só é dado para quem não o merece. Realmente ele não merecia aquela coisa.
A família reunida na sala esperando por notícias. Ninguém sabia o que se passava, aguardavam ansiosos a chegada do médico. E ele veio com a sentença: Alguns dias, no máximo um ou dois meses. O fim anunciado de uma jornada sem nódoas. Lágrimas de dor inundaram os olhos. Sentimentos que se desconhece até a intermitência da vida.
O corpo pálido descansava sobre o lençol limpo. Os filhos cochichavam, tinham medo de acordá-lo. O mais velho que ostentava longas madeixas escuras sentia falta das reclamações. Lembrava-se dos pedidos diários para que cortasse os cabelos e se portasse como homem de verdade, e logo depois, recebia um beijo de pai na face de menino. A enfermeira trouxe a caixinha de remédios. Uma porção. Logo ele que nunca foi de ir ao médico, de tomar remédio. Suas dores de cabeça e resfriados eram curadas com cachaça e mel. Nunca falhara.
Abriu os olhos e a luz causou-lhe certo desconforto. Lentamente esfregou os olhos, uma gotinha salgada desceu sem esforços. Raridade. O homem bonito a sua frente segurava um molho de cabelos. Um beijo na face enrugada. Beijo de filho. A cadeira de rodas atravessou o saguão triste do hospital, levando-o de volta para o dia. Na portaria, uma Mercedes prateada brilhava refletindo os raios do sol de uma manhã bonita como a mulher amada. Um sorriso repuxado aflorou.
O vento entrava pela janela acariciando o rosto tranquilo. As ruas barulhentas da cidade estavam em câmera lenta. Abrindo passagem. Outra lágrima desceu e secou em seguida. Fechou os olhos e partiu.

3 comentários:

  1. Li de ponta a ponta, meus parabéns por abordar um importante tema.
    Poderia ser só ficção, mas na verdade existe em qualquer lugar pessoas que são assim.

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  2. É verdade meu amigo Jader, muitas pessoas não vivem o presente, remoendo o passado ou mirando o futuro...
    Obrigado pela visita e comentário!

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  3. Ando um pouco perdida por aí, mas não esqueci o seu blog, aliás.. demorei, mas consegui comentar esse conto lá na NEB ! Eu realmente gostei dele e como já disse, está diferente dos que tenho lido até agora. Deve ser que é real, me lembrou muito o meu pai; escreva mais eheh
    Daugh

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